A PEC 241 e o desmonte do Estado social brasileiro
Por André Sposito Mendes, Advogado
O noticiário político-jurídico do país tem oferecido reduzida atenção a uma proposta de emenda constitucional que pode sepultar, de maneira definitiva, o Estado social previsto pela Constituição de 1988.
É certo que esse referido Estado nunca foi implementado de maneira integral nas terras brasileiras, mas nos últimos tempos temos observado um acréscimo na proteção social das áreas prioritárias como a Saúde e a Educação.
Além da vontade política dos governantes, outros fatores que influenciaram esse crescimento protetivo foram os enunciados normativos dos artigos 6º, 198, §2º e 212 da Constituição da República. Mais especificamente:
a) o direito social à Saúde, que prevê a regra de aplicação de um mínimo da receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde (de maneira progressiva, de 13,2% em 2016 até chegar no patamar de 15% em 2020);
b) o direito social à Educação, que prevê a regra de aplicação de 18% da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Essa proteção orçamentária que tem estimulado a criação de uma sociedade mais justa e menos desigual está ameaçada.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 241/2016, de autoria do governo Temer capitaneado pela dupla Temer/Meirelles, visa estabelecer o chamado Novo Regime Fiscal, ou seja, impor limites individualizados para a despesa primária total dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, do Ministério Público, da Defensoria Pública, todos no âmbito da União. E esses limites para o aumento das despesas serão estabelecidos pela inflação do ano anterior durante vinte exercícios financeiros. Na prática, essa PEC pode congelar os investimentos sociais por vinte longos anos no Brasil.
Com base nessa proposta, os gastos em Educação e Saúde, apenas para citar duas áreas prioritárias, não mais terão os limites mínimos de aplicação, mas serão limitados ao que já foi gasto no ano anterior, corrigido pelo valor da inflação.
Não é preciso raciocinar muito para perceber os efeitos deletérios que essa medida pode causar à grande parcela da população que necessita da proteção estatal.
Com o passar do tempo, cada vez mais investimentos serão necessários para as áreas da saúde e da educação, como é comum nos Estados mais avançados. Essas áreas demandam investimentos permanentes e, preferencialmente, que cresçam de maneira continuada.
O “Novo Regime Fiscal” limita a potencialidade de todas as áreas sociais, ao vincular a progressão dos gastos ao índice inflacionário. A medida claramente é influenciada por uma visão mais liberal da economia, com um menor intervencionismo estatal.
Não pregamos aqui uma suposta neutralidade ideológica dos governantes. Apenas ingênuos pensam que essa neutralidade existe. Os membros do Poder Executivo têm o direito de pensar da maneira que acharem mais adequada. Mas não podemos tratar essa questão apenas por um viés, deixando ao livre arbítrio do governo decidir o futuro da Nação pelas próximas décadas sem obedecer a Carta Maior da Nação, a Constituição da República.
Passamos para a análise constitucional da questão.
O artigo 60, §4º da Constituição expõe as cláusulas pétreas e afirma quais são as hipóteses em que uma proposta de emenda constitucional não pode nem mesmo ser objeto de deliberação. O inciso IV do referido parágrafo expõe a proteção literal aos “direitos e garantias individuais” que, em tese, seriam apenas aqueles previstos no artigo 5º e na cláusula de abertura do §2º.
Entretanto, essa não é a interpretação mais apurada. O enunciado normativo não abrange toda a proteção da norma constitucional.
A interpretação mais adequada sistematicamente com a Constituição, seja pela cláusula de abertura ou pela própria estrutura dos direitos fundamentais, seria a de que o inciso IV do parágrafo 4º do artigo 60 oferece a proteção de cláusula pétrea para todos os direitos e garantias fundamentais.
Assim, uma nova proposta de emenda à constituição que tenha por objetivo abolir direitos fundamentais não poderia ser nem mesmo objeto de discussão no parlamento.
Apesar de gerar efeitos terríveis para os direitos fundamentais, a PEC não abole os gastos sociais. Podemos alegar que ela destrói o Estado social brasileiro de maneira bem sútil, mantendo os investimentos em áreas sociais paralisados e, a cada ano que passa, o montante necessário para as despesas vai aumentando e se distanciando do investimento real do Estado. O que gera sucateamento do serviço público e acréscimo na desigualdade social
Há então uma grave ameaça, uma provável redução na proteção oferecida pela norma constitucional nos âmbitos da saúde e da educação.
Felizmente, há a cláusula da vedação do retrocesso, que decorre diretamente das cláusulas pétreas, uma construção doutrinária incorporada pelo Supremo para impedir ameaças mais tênues aos direitos fundamentais, como as que são veiculados pela Proposta de Emenda à Constituição em discussão.
A saúde e a educação são direitos sociais, previstos no artigo 6º. Desse modo, fazem parte do título II da Constituição que prevê, de maneira não exclusiva, os chamados “Direitos e Garantias Fundamentais”. Como são direitos fundamentais, é possível invocar a vedação do retrocesso para impedir a ameaça de PEC ofensiva às cláusulas pétreas.
Um último ponto que pode gerar alguma dúvida sobre a (in)constitucionalidade da PEC é a questão dos artigos que estabelecem os limites mínimos de aplicação orçamentária na saúde (art. 198, §2º) e na educação (art. 212) estarem fora do título II da Constituição.
A posição geográfica na Constituição não oferece qualquer óbice ao reconhecimento de que emanam normas de direitos fundamentais dos respectivos artigos. É questão pacificada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a existência de direitos fundamentais fora do Título II da Constituição.
Dessa maneira, comprovado o retrocesso social causado pela PEC 241/2016, ao congelar os investimentos sociais nas áreas da saúde e da educação por vinte anos, ofendendo assim cláusulas pétreas, não restam quaisquer dúvidas sobre a inconstitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição. Essa proposta não poderia nem mesmo ser discutida pelo parlamento, nos termos do artigo 60, §4º.
Está mais do que na hora de reconhecer a força normativa da Constituição, evitando assim que o progresso e as conquistas sociais conquistadas pelas brasileiras e pelos brasileiros sejam descartados de maneira tão despreocupada por maiorias políticas eventuais nos Poderes Executivo e Legislativo.
André Sposito Mendes é mestrando em Direito Constitucional (PUC-SP) e membro do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais (PUC-SP) Via: Justificando.com
Ps.: Alguma dúvida de que isso possa vir a ser implantado pelo 'senhor golpisto' devidamente identificado na imagem abaixo?