Há algo de estranho quando um processo toma as feições de um embate entre o juiz e o réu. O juiz está acima das partes. São elas – acusação e defesa – que se confrontam. Por isso, imagina-se, juízes não têm torcida. Torce-se para um ou outro lado e, portanto, para que o juiz decida a favor de um ou outro lado. Mas torcida pelo juiz? Implausível.
Até em ditaduras, quando elas desejam manter um mínimo de fachada de respeito por procedimentos legais, é assim. Os processos de Moscou, aos quais os críticos da Operação Lava Jato por vezes a comparam, foram uma farsa. Mas suas estrelas não foram os juízes. A estrela foi Vichinsky, o promotor. Era ele, em consonância com a formalidade do processo, que apresentava a acusação e empunhava a espada da vingança. Os juízes, obedientemente, limitavam-se a condenar.
O que espanta na Lava Jato é isto: o absoluto desprezo pelas aparências. Embalada pelo apoio acrítico da mídia corporativa, a operação atropela regras e direitos, comandada por um juiz que veste sem pudor a fantasia de justiceiro. Será lembrada como um dos episódios mais sórdidos da história do Brasil. Mas, infelizmente, ainda há quem, à esquerda, julgue que precisa defendê-la, seja por oportunismo (é preciso nadar a favor da correnteza), seja por uma ingenuidade quase inacreditável (os capitalistas estariam sendo pegos). O oportunismo significa capitular diante do enquadramento da realidade que a direita promove, que coloca um desvio – a corrupção – como o centro dos problemas nacionais, abdicando do enfrentamento com as fontes da desigualdade e da opressão. A ingenuidade ignora que a Lava Jato não mexe nas razões estruturais da corrupção, que se ligam à combinação entre capitalismo predatório e democracia limitada (cada vez mais limitada), e protege objetivamente tal estrutura, debitando todos os males na conta das “maçãs podres” que devem ser retiradas do cesto. Ser de esquerda e apoiar a Lava Jato é uma contradição em termos.
Na verdade, nem é preciso ser propriamente de esquerda. Qualquer liberal autêntico decerto execra a Lava Jato. Ela se constitui num verdadeiro mostruário de violações aos direitos individuais, ao império da lei e à neutralidade do aparato repressivo do Estado. Melhor ainda: nem precisa ser liberal, basta um pouco de bom senso.
É razoável que os papéis de perseguidor e juiz sejam exercidos pela mesma pessoa? É razoável que réus de processos similares recebam tratamentos tão díspares? É razoável que confissões sejam arrancadas à base de intimidação (propiciada pelas intermináveis prisões “provisórias”)? É razoável que as penalidades aplicadas àqueles considerados culpados sejam modificadas conforme seus depoimentos implicam fulano ou beltrano? É razoável que um tribunal superior afirme expressamente que um juiz não precisa cumprir a lei? É razoável que esse juiz cometa ilegalidades de forma deliberada, com o objetivo de prejudicar aqueles que persegue? É razoável que ele confraternize com alguns de seus réus, ao mesmo tempo em que se engalfinha publicamente com outros? É razoável que oitivas e julgamentos sejam verdadeiras produções conjuntas entre Poder Judiciário e mídia empresarial?
Trata-se de uma operação de caráter político, que foi pensada e executada com o objetivo de alcançar determinados objetivos: a não-reeleição e, depois, derrubada da presidente Dilma Rousseff; a aniquilação do PT e da esquerda; o linchamento moral do ex-presidente Lula. No processo, fazem-se vítimas colaterais: um ou outro capitalista, políticos de direita alvejados pelas disputas internas da coalizão regressista ou imolados à opinião pública. Isso leva aos curiosos desdobramentos recentes, em que surgem algumas vozes no Supremo e na mídia a protestar seletivamente contra “abusos” da Lava Jato. Mas o objetivo central continua o mesmo.
A perseguição contra o ex-presidente Lula é o elemento mais grotesco – e reconhecer este fato não exige qualquer simpatia por sua pessoa ou por suas políticas. Contrariamente ao preceito de que a investigação nasce de suspeitas, mobilizou-se polícia, Judiciário e Ministério Público para vasculhar sua vida em busca de algo que o comprometesse. É uma condenação em busca de um crime.
O horizonte da Lava Jato é um Estado policial, com características que apontam para o fascismo. Seu discurso tem um componente messiânico, que se torna gritante nas falas de um procurador menos avisado como Deltan Dallagnol. A operação traça uma linha precisa entre o bem e o mal e justifica qualquer violência que tenha como fim destruir o mal. Afinal, se trata disso: abater a jararaca, limpar o país. Direitos, garantias individuais, procedimentos legais, tudo isso faz parte do arsenal com que o mal tenta escapar da punição; logo, desprezá-los é obrigação dos bons. E, tal como o fascismo, a Lava Jato é liderada por um homem vestido de preto que mostra mais senso de oportunidade do que princípios.
Não tem meio termo, não tem concessão ao discurso dominante e aos consensos fabricados pela mídia: o caminho da reconstrução da democracia no Brasil passa por derrotar a Lava Jato.
Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).