quinta-feira, 8 de junho de 2017

Cadáver insepulto no Planalto

Há um cadáver insepulto no Planalto

No momento em que escrevo este texto, o Tribunal Superior Eleitoral está julgando o pedido de cassação da chapa Dilma Rousseff/Michel Temer. Após previsões em geral contrárias, que se seguiram à divulgação das gravações de Joesley Batista, as bolsas de apostas viraram e agora indicam uma vitória de Temer, por 5 votos a 2, segundo alguns, ou mais apertada, 4 a 3, segundo outros. Enquanto isso, a Comissão de Assuntos Econômicos aprovou a famigerada reforma trabalhista, também conhecida como extinção da CLT, permitindo que o governo sonhe em tê-la definitivamente acatada pelo Congresso dentro de poucos meses. Em suma, apesar da prisão do homem da mala e também de Henrique Eduardo Alves, apesar das perguntas de Janot e da certeza de que novas revelações não tardarão a surgir, apesar da impopularidade recorde e de ser rechaçado pela esmagadoria maioria da população brasileira, o usurpador estaria numa situação favorável. Estaria obtendo vitórias nos três fronts que interessam: no judiciário, com a esperada absolvição no TSE; no legislativo, mostrando que ainda pode comprar o apoio da maioria; e, sobretudo, junto ao capital, provando que é capaz de levar adiante a agenda do retrocesso nos direitos.

Mesmo que tudo isso se configure, não muda o essencial. As condições para que Michel Temer governe são muitíssimo precárias. Não estou falando de legitimidade, que essa ele – presidente às custas de um golpe – nunca teve. Mas assim que o impeachment ilegal de Dilma Rousseff se desenhou, os grupos interessados em empalmar o poder entenderam que precisariam aceitá-lo no Palácio do Planalto. Não por gosto, decerto; a impressão que fica é que ninguém, nem Marcella, nem mesmo Moreira ou Jucá, é capaz de gostar de Temer. Mas ele se impõe pela capacidade de distribuir favores ou ameaças e de estar no lugar certo no momento preciso. Seja como for, Temer ganhou o cargo como uma contingência necessária ao projeto de desmontar a Carta de 1988 e a democracia no Brasil.

Esse foi o quadro que mudou a partir da divulgação das gravações dos executivos da JBS. As razões da artilharia contra Temer e, em particular, da súbita oposição a ele pelo Grupo Globo ainda precisam ser desveladas. Mostram um agravamento das fissuras na coalizão golpista, que nunca deixaram de existir, mas que até então eram contidas em nome do “bem maior”: derrubar o governo petista, criminalizar a esquerda, revogar direitos. É nesse cenário, sem apoio mesmo dos que se beneficiam de suas políticas, que Temer tenta se equilibrar na presidência.

No jargão político estadunidense, diz-se que o presidente que não consegue se reeleger é relegado, no final de seu mandato, quando seu oponente já foi consagrado pelas urnas, à condição de lame duck – “pato manco”, o governante de jure que não tem mais condições de governar de facto. Recentemente, um cientista político conservador, que saudara com entusiasmo o golpe e o próprio Temer (que segundo ele estaria “bem postado para liderar” um “governo de salvação nacional”), classificou o usurpador de “supermanco”. Isto é, falta-lhe não apenas a legitimidade popular, que nunca teve, ou a popularidade, que sempre foi baixa e que o desvelamento de seu programa de destruição do país fez descer a níveis liliputianos. Falta-lhe também a mínima fachada de decência que a opinião pública nacional e estrangeira exige de qualquer governante, o mínimo de credibilidade e respeitabilidade, mesmo que fajutas, para conduzir as negociações inerentes ao cargo. Senta na cadeira da presidência alguém que não tem mais como fingir, a quem quer que seja, que não é um patife.

A mercê de apoios pontuais que precisam ser obtidos a preços cada vez mais elevados, descartável por seus patrocinadores assim que der um passo em falso, impossibilitado de avançar qualquer projeto pessoal, evitado como tóxico por todos os que desejam perdurar na esfera pública, Michel Temer é um cadáver político que se recusa a ser sepultado. O pior é que ele pode permanecer nesta condição até o final de 2018, pela incapacidade da coalizão golpista encontrar uma solução que a reagrupe, pela resistência à escolha de um novo presidente por um Congresso tão indigno de respeito, pelo pânico que as classes dominantes têm de envolver o povo no processo. O prolongamento da agonia de Temer arrasta consigo um sistema político já bastante combalido, expondo-o sem máscara como ancorado na pura e simples bandidagem. A única esperança de recuperá-lo é retirando o atual ocupante da presidência e dando a ele uma injeção de legitimidade popular, por meio das diretas. Infelizmente, embaladas com a ideia de alcançar os retrocessos a todo custo, nossas elites parecem desinteressadas dessa solução. Cabe à mobilização popular forçá-las a mudar de postura.

Luis Felipe Miguel é doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)

Via Justificando.com