Há um cadáver insepulto no Planalto
No momento em que escrevo este texto, o Tribunal Superior
Eleitoral está julgando o pedido de cassação da chapa Dilma Rousseff/Michel
Temer. Após previsões em geral contrárias, que se seguiram à divulgação das
gravações de Joesley Batista, as bolsas de apostas viraram e agora indicam uma
vitória de Temer, por 5 votos a 2, segundo alguns, ou mais apertada, 4 a 3,
segundo outros. Enquanto isso, a Comissão de Assuntos Econômicos aprovou a
famigerada reforma trabalhista, também conhecida como extinção da CLT,
permitindo que o governo sonhe em tê-la definitivamente acatada pelo Congresso
dentro de poucos meses. Em suma, apesar da prisão do homem da mala e também de
Henrique Eduardo Alves, apesar das perguntas de Janot e da certeza de que novas
revelações não tardarão a surgir, apesar da impopularidade recorde e de ser
rechaçado pela esmagadoria maioria da população brasileira, o usurpador estaria
numa situação favorável. Estaria obtendo vitórias nos três fronts que
interessam: no judiciário, com a esperada absolvição no TSE; no legislativo,
mostrando que ainda pode comprar o apoio da maioria; e, sobretudo, junto ao
capital, provando que é capaz de levar adiante a agenda do retrocesso nos
direitos.
Mesmo que tudo isso se configure, não muda o essencial. As
condições para que Michel Temer governe são muitíssimo precárias. Não estou
falando de legitimidade, que essa ele – presidente às custas de um golpe –
nunca teve. Mas assim que o impeachment ilegal de Dilma Rousseff se
desenhou, os grupos interessados em empalmar o poder entenderam que precisariam
aceitá-lo no Palácio do Planalto. Não por gosto, decerto; a impressão que fica
é que ninguém, nem Marcella, nem mesmo Moreira ou Jucá, é capaz de gostar de
Temer. Mas ele se impõe pela capacidade de distribuir favores ou ameaças e de
estar no lugar certo no momento preciso. Seja como for, Temer ganhou o cargo
como uma contingência necessária ao projeto de desmontar a Carta de 1988 e a
democracia no Brasil.
Esse foi o quadro que mudou a partir da divulgação das
gravações dos executivos da JBS. As razões da artilharia contra Temer e, em
particular, da súbita oposição a ele pelo Grupo Globo ainda precisam ser
desveladas. Mostram um agravamento das fissuras na coalizão golpista, que nunca
deixaram de existir, mas que até então eram contidas em nome do “bem maior”:
derrubar o governo petista, criminalizar a esquerda, revogar direitos. É nesse
cenário, sem apoio mesmo dos que se beneficiam de suas políticas, que Temer
tenta se equilibrar na presidência.
No jargão político estadunidense, diz-se que o presidente
que não consegue se reeleger é relegado, no final de seu mandato, quando seu
oponente já foi consagrado pelas urnas, à condição de lame duck –
“pato manco”, o governante de jure que não tem mais condições de
governar de facto. Recentemente, um cientista político conservador, que
saudara com entusiasmo o golpe e o próprio Temer (que segundo ele estaria “bem
postado para liderar” um “governo de salvação nacional”), classificou o
usurpador de “supermanco”. Isto é, falta-lhe não apenas a legitimidade popular,
que nunca teve, ou a popularidade, que sempre foi baixa e que o desvelamento de
seu programa de destruição do país fez descer a níveis liliputianos. Falta-lhe
também a mínima fachada de decência que a opinião pública nacional e
estrangeira exige de qualquer governante, o mínimo de credibilidade e
respeitabilidade, mesmo que fajutas, para conduzir as negociações inerentes ao
cargo. Senta na cadeira da presidência alguém que não tem mais como fingir, a
quem quer que seja, que não é um patife.
A mercê de apoios pontuais que precisam ser obtidos a preços
cada vez mais elevados, descartável por seus patrocinadores assim que der um
passo em falso, impossibilitado de avançar qualquer projeto pessoal, evitado
como tóxico por todos os que desejam perdurar na esfera pública, Michel Temer é
um cadáver político que se recusa a ser sepultado. O pior é que ele pode
permanecer nesta condição até o final de 2018, pela incapacidade da coalizão
golpista encontrar uma solução que a reagrupe, pela resistência à escolha de um
novo presidente por um Congresso tão indigno de respeito, pelo pânico que as
classes dominantes têm de envolver o povo no processo. O prolongamento da
agonia de Temer arrasta consigo um sistema político já bastante combalido,
expondo-o sem máscara como ancorado na pura e simples bandidagem. A única
esperança de recuperá-lo é retirando o atual ocupante da presidência e dando a
ele uma injeção de legitimidade popular, por meio das diretas. Infelizmente,
embaladas com a ideia de alcançar os retrocessos a todo custo, nossas elites
parecem desinteressadas dessa solução. Cabe à mobilização popular forçá-las a
mudar de postura.
Luis Felipe Miguel é doutor em ciências sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Instituto de
Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)
Via Justificando.com