Programa de moradia de Portugal para moradores de rua
deveria inspirar Brasil
Moradores de rua em São Paulo. Foto: Agência Brasil
Carla tem um sorriso largo, mas com uma tristeza enigmática
de fundo. Já esteve em situação de rua, já esteve em albergues. Uma vez esteve
até numa “moradia”, mantida por uma Santa Casa de Misericórdia, mas lá não se
podia sair para a rua senão em horários determinados.
Se refere ao local como
uma clausura, deixando pistas sobre a origem daquela tristeza no sorriso.
Agora, está há sete anos em sua própria casa, que conseguiu por meio do
programa Casa Primeiro de Lisboa. Conheci a casa de Carla, que fica ao
lado da estação de metrô Alameda, num bairro muito concorrido de Lisboa,
buscando entender na prática o funcionamento deste programa que há mais de um
ano vinha estudando na teoria.
Carla foi uma das primeiras pessoas a ser contemplada com
uma casa do programa Casa Primeiro de Lisboa. Ele é desenvolvido na capital
portuguesa desde 2009 pela AEIPS (Associação para o Estudo e Integração
Psicossocial), uma entidade que trabalha há 30 anos com questões de saúde mental.
Na época, foi uma iniciativa pioneira na Europa. Hoje já é desenvolvida em mais
de 60 entidades de 28 países. A concepção do programa como a conhecemos hoje
foi desenvolvida no início da década de 1990, em Nova York, EUA, pelo psicólogo
Sam Tsemberis, que fundou a ONG Pathways to Housing para implementar e
disseminar o programa.
A proposta do Casa Primeiro parte de um pressuposto
elementar: quem está na rua, precisa de moradia.
O foco são pessoas em situação de rua crônica,
associada muitas vezes a problemas de saúde mental ou a uso abusivo de drogas.
Atualmente, há duas associações desenvolvendo o Casa Primeiro em Lisboa, uma
focada em saúde mental (a AEIPS), outra em dependência química (a Crescer na
Maior, Associação de Intervenção Comunitária). No total, são 80 pessoas
atendidas pelos dois programas, o que significa já 20% da população sem abrigo
de Lisboa – isto com base nos dados oficiais, que contam 400 pessoas nestas condições.
O horizonte, claro, é atender todas elas. Porém, segundo técnicos da AEIPS,
deve-se pensar também naquelas pessoas que estão em abrigos públicos, que
também deveriam ir para uma moradia. Além disso, os dados oficiais podem estar
subestimados, havendo quem diga que há ao menos o dobro de pessoas em situação
de rua em Lisboa.
Três princípios básicos norteiam o programa Casa Primeiro
ali desenvolvido:
a) A moradia é permanente.
Isto é, não há prazo para as pessoas saírem da moradia,
podem lá estar por tempo indeterminado. Elas podem mudar de bairro ou de cidade
e permanecer no programa (seja por meio de transferência para um programa
local, seja por meio da própria AEIPS), mas, querendo, ficam permanentemente na
moradia em que estão.
Uma das características importantes do Casa Primeiro
desenvolvido pela AEIPS é que ela trabalha com casas/apartamentos alugados. Não
há aquisição de imóveis para o programa. Os imóveis são alugados diretamente no
mercado de aluguéis privados. Os contratos são feitos em nome da associação
diretamente com os proprietários. Segundo os técnicos da AEIPS, em regra não há
problemas de discriminação destes proprietários com relação à finalidade do
imóvel. Mas há casos isolados, como um no qual o proprietário, após saber
detalhes sobre o uso do imóvel, se valeu da desculpa que gostaria de alugar seu
imóvel a particulares, não a uma associação. Trata-se de uma desculpa no fundo
muito ruim, pois o contrário é a regra, em geral os proprietários se sentem
mais seguros em contratar com uma pessoa jurídica.
A moradia permanente permite também uma melhor integração
comunitária. Esta integração não é uma “aculturação” ou “ressocialização” da
pessoa, é uma mudança de contexto que implica um processo básico de adaptação,
por vezes tranquilo, por vezes mais demorado. Em geral, a integração é completa
e as pessoas tendem a querer permanecer na mesma casa. Mas há exceções, as
quais podem ser resolvidas graças ao princípio seguinte.
b) As casas são territorialmente dispersas.
Primeiramente, isto visa a evitar a guetização. São muito
conhecidos em Portugal, e em Lisboa em especial, os bairros sociais, em que
prédios públicos atendem pessoas que não têm moradia. No entanto, estes prédios
foram construídos todos juntos e em regiões periféricas, sofrendo um forte
processo de estigmatização ao longo do tempo. Isto é evitado no programa Casa
Primeiro por meio da dispersão das casas.
Em segundo lugar, esta dispersão permite que as pessoas
atendidas tenham alguma margem de escolha quanto ao local onde vão morar.
Permite também que, não se adaptando a uma dada localidade, elas se mudem para
outro bairro. Um dos casos a mim relatados dá conta de que uma senhora estava
em situação de rua há 15 anos e que queria morar no Bairro Alto, um conhecido
bairro de Lisboa, bem localizado, com todos os serviços urbanos disponíveis e
muitas atrações históricas e turísticas. Depois de 3 anos residindo no local,
embora aparentemente bem adaptada, ela quis sair de lá. Ela revelou para a
equipe do programa que havia discriminação contra ela no local porque ela fora
pessoa em situação de rua. Por esta razão, queria sair dali e começar do zero
sua vida em outro local. Assim foi feito, providenciando a associação um outro
imóvel para onde ela pudesse ir.
c) As habitações são individuais.
Isto se justifica, primeiramente, pela construção de
objetivos individuais das pessoas, pelo desenvolvimento do poder de escolha
individual. Porém, isto não exclui que a moradia seja compartilhada com
companheiro/companheira ou com filhos. Está envolvido aí também o princípio do
poder de escolha sobre com quem a pessoa quer viver. Assim, há casos em que
casais sem abrigo são contemplados com uma casa e há casos em que, depois de se
estabelecer numa moradia, a pessoa passa a viver com um(a) companheiro(a). De
qualquer modo, atualmente no programa da AEIPS, 85% das pessoas vivem sozinhas
e querem viver sozinhas.
Os imóveis alugados pela AEIPS seguem as tipologias T0
(“kitinete”) e T1 (quarto e sala).
O imóvel de Carla era um quarto e sala, no
térreo de um prédio de três andares. Como um “plus”, pela sua cozinha ela tem
acesso direto a um grande e confortável pátio, área comum do edifício. Para
serem contempladas com um imóvel, as pessoas sem abrigo atendidas pelo programa
fazem um contrato com a Associação pela qual se comprometem a:
i) receber a visita dos técnicos do programa; no
início, a visita é diária, podendo até ocorrer mais de uma vez por dia; com o
tempo, as visitas diminuem até o mínimo de uma visita por semana. A finalidade
das visitas é dar todo o suporte social e psicológico de que a pessoa precise,
auxiliando-a com a organização do imóvel e com encaminhamentos necessários para
a formulação e realização de um projeto de vida; os profissionais envolvidos em
regra têm formação em psicologia ou em desenvolvimento comunitário, mas não há
uma formação específica exigida. Conforme apontado por um técnico da
associação, o importante é sensibilidade com as demandas e formação
multidisciplinar;
ii) contribuir com 30% de sua renda para o pagamento do
aluguel. É a chamada taxa de esforço. Esta contribuição, segundo os técnicos da
AEIPS, é uma forma de criar compromisso e ligação da pessoa com o bem que serve
de moradia. A maioria das pessoas atendidas, entretanto, não trabalha. Muitas
têm longo percurso de institucionalização e dificuldade para conseguir
empregos. Algumas fazem jus ao rendimento social de inserção (pago pelo governo
a quem tem dificuldades financeiras), outras são pensionistas. Quem não tem
renda alguma, nada paga pelo aluguel, que então é inteiramente custeado pela
associação. De qualquer modo, há flexibilidade nas cobranças e a pessoa não é
despejada se não pagar. No caso de Carla, ela nos contou que estava à busca de
um emprego há muito tempo, mas que era muito difícil conseguir. Gostaria de
trabalhar num café, mas ia a entrevistas e não recebia qualquer resposta depois
– nem ao menos um não. Estava esperançosa porque, há pouco tempo, uma amiga
havia conseguido um emprego. E ainda mais, iria começar um curso de capacitação
para aprender francês, o que poderia ajudar em tentativas futuras.
Em Lisboa, houve decisivo apoio do Estado português para a
criação do programa. Ele se inseriu inicialmente na primeira Estratégia
Nacional de Integração das Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015). No início do
programa, se fixou o marco de um ano para a associação apresentar resultados
práticos e mostrar que funcionava. Os resultados foram de fato positivos,
porém, em 2011, com a ascensão de um governo de centro-direita em Portugal,
houve corte de 70% das receitas do programa. Isto levou a que a AEIPS tivesse
que diversificar as fontes de apoio, tendo a “Câmara Municipal de Lisboa” (é
como eles se referem à Prefeitura Municipal) assumido na sequência o
financiamento do projeto por meio de uma licitação pública.
A maioria dos programas existentes para pessoas em situação
de rua se baseia no modelo “staircase”, progressivo, ou “modelo das
escadinhas”, como dizem os técnicos do Casa Primeiro em Lisboa. Trata-se de um
modelo que preconiza primeiro o tratamento, com acesso a leito hospitalar, a
leito em albergue e, só ao final de um processo, a uma moradia e a integração
comunitária. Entende-se que uma pessoa só poderia cuidar de uma casa depois de
passar por todo este processo, por meio do qual ela se prepara para finalmente
ter uma moradia. O modelo “Casa Primeiro”, ao contrário, se vale da metáfora de
que só se aprende a nadar dentro d’água. Ou seja, para uma verdadeira
integração comunitária, potencializando os efeitos de eventuais tratamentos de saúde
e de encaminhamentos socias, a pessoa deve ter imediatamente acesso a uma
moradia.
Eventuais outros problemas são resolvidos a partir desta inserção.
Isto evita o típico problema do “revolving doors”, do entra e sai em diversos
serviços assistenciais, de saúde e até mesmo de segurança, sem qualquer solução
de continuidade no atendimento.
Ora, não é óbvia esta afirmação de que estas pessoas em
situação de extrema vulnerabilidade precisam de casa, nem mesmo para os que
estão realmente preocupados com a busca por soluções para a situação de rua. A
objeção mais imediata é: basta um leito em um albergue coletivo para satisfazer
a necessidade de um teto, não é necessário mais do que isso para resolver o
problema das pessoas em situação de rua. Para contrapor esta objeção, devemos
aceitar duas premissas que sustentam o Casa Primeiro: a da justiça distributiva
e a dos direitos humanos.
Quanto à justiça distributiva, trata-se de entender que
nossos grandes centros urbanos têm uma quantidade tal de imóveis para habitação
que pode dar conta do problema das pessoas sem abrigo. Na Europa como um todo,
são 11 milhões de imóveis vazios, em contraposição a 4 milhões de pessoas sem
abrigo. Promover o encontro daqueles imóveis vazios e destas pessoas não tem
sido prioridade dos governos, mas medidas neste sentido são óbvias medidas de
justiça distributiva e precisam ser implementadas com escala.
Pode-se dizer que
o programa Casa Primeiro atinge com grande sucesso esta finalidade, sem gerar
distorções significativas no mercado habitacional, tendo em vista que a
quantidade de pessoas sem abrigo é pequena com relação ao tamanho deste
mercado.
Em Lisboa, os técnicos da AEIPS confirmam que não há
percepção de movimentos especulativos de proprietários de imóveis em razão do
programa. Por outro lado, relatam que a cidade de Lisboa sofreu forte inflação
imobiliária nos últimos anos, atribuída à expansão do “alojamento local”
(imóveis que prestam serviços de alojamento temporário a turistas, mediante
remuneração), do “airbnb” e da compra de imóveis por estrangeiros. Isto levou a
maiores dificuldades para encontrar casas/apartamentos com preços acessíveis
(os preços dos aluguéis normalmente procurados pela AEIPS variam entre 350 e
400 euros por mês).
Quanto à premissa dos direitos humanos, que inspirou a
concepção inicial do programa por Sam Tsemberis, a ideia é que o direito à
moradia é um direito humano e como tal deve ser garantido a todos, deve ser
universal. De fato, tal direito humano é amplamente previsto no direito interno
de diversos países e em tratados internacionais de direitos humanos. Vale
mencionar a previsão na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, art.
XXV, item 01, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, em seu art. 11, item 1, e, mais recentemente, na Declaração de
Istambul, decorrente da Segunda Conferência das Nações Unidas sobre
Assentamentos Humanos de 1996.
Nesta última declaração, foi reafirmado o “compromisso
com a total e progressiva realização do direito a moradias adequadas, conforme
estabelecido em instrumentos internacionais”, assegurando a garantia legal de
posse e a “proteção contra discriminação e igual acesso a moradias
adequadas, a custos acessíveis, para todas as pessoas e suas famílias”. Ainda,
desta conferência emergiu um Plano de Ação Global, a “Agenda Habitat”, que
previu, no seu parágrafo 61, que “Dentro do contexto geral de uma
abordagem facilitadora, Governos devem empreender as ações apropriadas de forma
a promover, proteger e garantir a realização progressiva e total do direito à
moradia adequada.”
Da própria garantia jurídica deve decorrer o dever do Estado
de viabilizar o acesso à moradia digna, seja por meio de prestação direta, seja
por meio de regulação adequada do mercado habitacional. A técnica mais adequada
para viabilizar este acesso à moradia para pessoas em situação de rua crônica é
o Casa Primeiro (Housing First). E a moradia aí deve ser entendida não apenas
como um teto sob o qual se abrigar, mas também como um local em que haja
segurança legal da posse; custo acessível; habitabilidade; acessibilidade;
localização razoável; disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e
infra-estrutura; e adequação cultural. Estes são os requisitos para se
reconhecer uma moradia digna segundo da ONU (Comentário n. 4 do ECOSOC –
Conselho Econômico e Social). Neste sentido, o mero abrigamento coletivo em
albergues públicos não satisfaz este direito humano básico.
Para além daquelas duas premissas, há questões práticas
relacionadas à eficácia do programa. Foi fartamente demonstrado pelas
experiências nos EUA que o Casa Primeiro é mais barato para os cofres públicos
do que os modelos de albergues públicos e do que manter as pessoas nas ruas.
Isto parece contraintuitivo. Mas a estabilidade proporcionada por um imóvel à
pessoa leva a uma redução drástica nos gastos com pessoal que exigem o modelo
dos albergues ou o fato de simplesmente deixar as pessoas nas ruas, pensando aí
nos custos de assistência social, saúde e segurança.
Em Lisboa, o projeto Casa Primeiro tem custo de 16 euros por
dia, por pessoa (contanto aluguel e equipe). Para pessoas que estão em serviços
de quarto mantidos pelo poder público, o custo é de 18 euros por dia, por
pessoa. Já num albergue público, o custo é de 20 euros por dia, por pessoa.
Estes dados tornam o programa irrecusável do ponto de vista das políticas
públicas, da eficiência e da probidade administrativa.
Pessoas como Carla dificilmente estariam a sonhar com um
emprego caso não estivessem numa moradia. Sua casa estava muito bem cuidada,
embora com forte cheiro de tabaco – e a casa é dela, para além das regras
mencionadas acima para acesso ao programa, não há nada que ela não possa fazer
ali. No sorriso farto de Carla, os dentes cinzas não deixavam esconder o vício
no cigarro, pra segurar os rojões da vida. Mas a tristeza no seu sorriso é a de
quem sabe as dificuldades que enfrenta – fala com melancolia do curso de
francês que irá fazer, antevendo certamente as dificuldades que enfrentará no
mercado de trabalho. Ao menos a dignidade por ter uma casa sua ela já
conseguiu.
Os programas do tipo Casa Primeiro têm sido fartamente
descritos como casos de sucesso.
Hoje, Portugal discute uma Estratégia Nacional para pessoas
em situação de rua, a ser aplicada entre 2017 e 2023, que deve incorporar o
acesso à moradia por meio de programas Casa Primeiro. Além de Lisboa, outras
cidades como Caiscais, Leiria, Aveiro, Gaia e Braga também já desenvolvem este
tipo de programa. Trata-se de um paradigma relativamente recente, mas que
necessariamente deverá permear qualquer política pública para pessoas em
situação de rua nos centros urbanos ao redor do mundo. Isto porque é um modelo
que atende a imperativos de justiça distributiva e de direitos humanos, além de
ser mais eficiente do que as abordagens adotadas até hoje.
No mais, não há porque recusar este tipo de programa diante do aumento da dificuldade das pessoas em acessar a habitação e da proliferação de imóveis vazios e subutilizados.
Rafael Lessa V. de Sá Menezes é Defensor Público.
Doutor em Direito pela USP. Pós-doutorando em Direitos Humanos e Democracia
pela Universidade de Coimbra. (Via justificando.com)
