Ler Para Saber Sobre os Abusos Comparados | Portugal Estuda 'Lava Jato' Para Não Repetir os Mesmos Abusos...
Por José Higídio(¹)
A comparação do caso do ex-primeiro-ministro português António
Costa com a “lava jato” brasileira é “inevitável” e motivo de estudo nas aulas
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). É o que aponta o
professor Eduardo Vera-Cruz Pinto, diretor da FDUL.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele
explica que os abusos da “lava jato” — desde o protagonismo do ex-juiz Sergio
Moro até as prisões antes do trânsito em julgado — são usados pela universidade
para avaliar normas vigentes em Portugal e propor regras que evitem violações
dos direitos de suspeitos.
António Costa renunciou ao cargo no último ano após o Ministério
Público português insinuar seu envolvimento em irregularidades em negócios do
governo. Embora o MP tenha inicialmente alegado que o nome do então premiê foi
citado em escutas telefônicas, mais tarde o próprio órgão admitiu que a
transcrição estava incorreta e que se tratava, na verdade, de um homônimo, cujo
último sobrenome, Silva, foi omitido no indiciamento.
“O caso acabou por revelar uma certa normalização de meios
extraordinários de colheita de prova e do seu prolongamento no tempo que muitos
setores da sociedade civil e da comunidade jurídica consideraram sem
justificativa”, pondera Pinto. Segundo ele, isso exige uma reforma da Justiça,
para acabar com atentados a direitos, liberdades e garantias constitucionais.
O professor também ressalta o perigo da ascensão de grupos
políticos extremistas em Portugal, cujas propostas afrontam a “civilidade e
cultura jurídicas” e fazem a sociedade regredir em conflitos “que o Direito já
há muito resolveu”. Pinto defende o papel da educação básica na prevenção desse
tipo de ideias. Na sua visão, o Estado português está investindo pouco nesta
área.
Ele ainda destaca a procura da FDUL por alunos brasileiros nas últimas décadas, especialmente para os cursos de mestrado e doutorado. De acordo com o diretor, isso “é um fator de diversidade e de inclusão que contribui para a renovação de elementos didáticos e temáticos”. Leia a seguir a entrevista:
ConJur — A FDUL recebe muitos alunos brasileiros?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — Sim. Gostaríamos de receber mais. A procura da
nossa escola por alunos vindos do Brasil é uma realidade que tem várias décadas
e está em crescimento.
A sua frequência, sobretudo a nível dos mestrados e doutorados, é
um fator de diversidade e de inclusão que contribui para a renovação de
elementos didáticos e temáticos de ensino, de incorporação de perspectivas
diferentes e de inovação pedagógica que valoriza a escola e introduz uma
dinâmica acadêmica que é essencial em instituições clássicas, como é a nossa.
ConJur — Por que receber alunos brasileiros é importante
para a FDUL?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — Além dos aspectos acima salientados, a presença
dos estudantes brasileiros na FDUL firma uma relação científica e curricular
muito antiga que se renova em cada geração de alunos que se inscreve para
frequentar a faculdade nos três níveis de ensino (licenciatura, mestrado e
doutorado).
Há mais de 20 anos a FDUL criou o Instituto de Direito Brasileiro,
para cuidar de forma mais específica e intensa da nossa relação com as
faculdades de Direito do Brasil, a Ordem dos Advogados, os tribunais e as
associações de magistrados, procuradores e defensores públicos. Pode dizer-se,
sem perigo de exagero, que a comunidade brasileira (que integra professores,
alunos e funcionários) está diluída na comunidade acadêmica e contribui para a
sua identidade e características.
O desafio que a inclusão de brasileiros, angolanos e de outros
países de língua oficial portuguesa, nos vários aspectos em que se concretiza o
cotidiano escolar, coloca a todos os que aqui aprendem, ensinam e trabalham é
importante para efetivar o que ensinamos sobre combate à discriminação e à
exclusão e as políticas adequadas a garantir uma igualdade plena com conteúdos
jurídicos.
ConJur — De que forma o aprendizado recebido nesse
intercâmbio ajuda nas carreiras dos estudantes brasileiros?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — Felizmente foi vencida a barreira — embora ainda
subsistam algumas resistências sem fundamento e sem significado — relativa ao
pleno reconhecimento acadêmico dos diplomas e certificados de graus acadêmicos
portugueses no Brasil.
A FDUL tem uma política institucional consistente e contínua de
combate pelo reconhecimento automático de graus acadêmicos, na área do Direito,
de cursos que estejam devidamente autorizados pelas entidades competentes de
ambos os países, nos termos das normas legais aplicáveis.
Os alunos brasileiros que adquirem um grau na FDUL entram, nos
termos gerais fixados para estes casos, em um sistema integrado de ensino da
União Europeia, que lhes permite dar continuidade aos seus estudos
pós-graduados no vasto espaço da Europa e valorizar a internacionalização — um
dos componentes curriculares mais apreciados — na respectiva avaliação
acadêmica e profissional.
ConJur — Quais as principais diferenças e semelhanças
entre o ordenamento jurídico brasileiro e o português?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — São muitas e, no entanto, poucas. As muitas
diferenças resultam de diferentes ordenamentos jurídicos que correspondem à
expressão soberana de cada um dos Estados no exercício de poderes Executivos,
Legislativos e Judiciários. Logo, as normas são redigidas de formas diversas,
com tradições normativas próprias e com as diversidades jurídicas resultantes
das diferenças de organização política e de sistemas de governo entre Brasil e
Portugal.
Mas essa é uma diferença mais de forma que de conteúdos. O Brasil,
apesar da forte pressão mercantilista sobre o ordenamento civil e da influência
norte-americana, mantém-se firme no âmbito do sistema privatista romano
germânico, fiel à tradição constitucional de matriz lusófona, com juízos de
censura e de aprovação próximos da cultura jurídica latina comum e com um
sistema jurídico que dialoga facilmente com o português.
ConJur — Quais são os principais desafios da Justiça
portuguesa atualmente? Há alguma comparação com a situação do Brasil?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — Os desafios colocados à Justiça portuguesa são
tantos e tão diversos que seria impossível aqui sequer enumerá-los. Mas não são
muito diferentes dos que se colocam aos outros países onde a democracia e o
Estado de Direito estão a ser discutidos nos seus fundamentos e instituições.
Por isso, e pelas razões da história, as Justiças portuguesa e
brasileira estão em uma circunstância que se recomenda um diálogo ativo entre
todos os seus intervenientes. Trocar experiências, avaliar propostas, analisar
políticas do Direito e da Justiça, discutir a organização judiciária, o acesso
à Justiça e a formação profissional de magistrados, advogados, funcionários
judiciais e outros profissionais jurídicos é importante para ambos os países.
O comparatismo judiciário, na universidade e com a participação de
professores de Direito, é um elemento a valorizar na melhoria da prestação de
um serviço público de Justiça e na formação de sociedades mais equilibradas e
iguais. Logo, mais justas.
Mas também existem aspectos técnicos, administrativos e
burocráticos a considerar. A jurimetria, a introdução da IA, a digitalização, a
dadificação têm de ser objeto de mais estudo e reflexão pelos juristas, antes
de serem introduzidas no ensino jurídico, no operar judiciário e na prestação
de serviços de Justiça. Também aí, Brasil e Portugal têm muito caminho comum —
facilitado pelo uso da língua comum e pelos laços da afetividade fácil que
constroem — a fazer.
ConJur — Tendo em vista o caso do ex-primeiro-ministro
António Costa, erros judiciários preocupam Portugal?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — Trata-se de um caso que, embora ainda tenha
aspectos pendentes, revelou a necessidade de haver uma ponderação serena — com
efeitos de clarificação legislativa — sobre a oportunidade das buscas e apreensões
a governantes, a avaliação dos tipos penais e o modo de intervenção dos poderes
policiais e do Ministério Público quando estão em jogo formas de exercer o
Poder Executivo que estão no limite da licitude jurídica, consoante às
interpretações normativas.
O caso acabou por revelar uma certa normalização de meios
extraordinários de colheita de prova e do seu prolongamento no tempo que muitos
setores da sociedade civil e da comunidade jurídica consideraram sem
justificativa. Isso tem levado a um movimento que exige uma reforma da Justiça
que ponha fim a essa possibilidade que atenta contra direitos, liberdades e
garantias das pessoas, com consagração constitucional. Creio que o mesmo se
passou no Brasil, embora com as muitas diferenças que existem entre ambas as
sociedades.
ConJur — Há algum paralelo entre esse caso e a “lava
jato” no Brasil?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — A comparação é inevitável e motivo de estudo nas
aulas. O Brasil tem sido um laboratório de experiências em domínios penais,
processuais, deontológicos, jurisprudenciais, prisionais e tantos outros. O
atribulado curso da “lava jato”, o protagonismo do ex-juiz Sergio Moro, o apoio
da rua e o apelo dos demagogos e moralistas à intervenção política de juízes em
funções, a revelação pelo juiz de segredos do processo com justificações de
ordem política, a inversão do ônus da prova, a prisão antes do trânsito em
julgado da sentença condenatória dos réus, os argumentos legitimadores de
“delações premiadas” e o confronto de tudo isto com a civilidade jurídica do
século 21 foi — e continua sendo, agora com outros protagonistas e sentidos —
muito útil para que a universidade participe na avaliação das normas vigentes,
na forma como são interpretadas e aplicadas pelos profissionais forenses e na
propositura de regras que evitem situações dramáticas de violação de direitos
dos suspeitos e arguidos.
Depois existe o problema colocado pela violação do segredo de
Justiça e da sua publicação nos órgãos de comunicação social. Um problema sério
nas sociedades abertas e democráticas colocado à Justiça que se faz sentir —
com os dramas pessoais e institucionais (Estado de Direito) — quer no Brasil,
quer em Portugal.
ConJur — A ascensão de grupos extremistas em Portugal tem
influência nas questões jurídicas?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — Claro. O extremismo político situa-se fora dos
limites colocados pelo Direito à política em Estados de Direito democráticos,
com Constituições que disciplinam a relação entre os cidadãos e a sociedade e o
Estado.
A qualificação de grupos ou partidos políticos como extremistas
deve obedecer a critérios e parâmetros fixados de forma racional, lógica e
objetiva pelo Direito, evitando a sua instrumentalização por adversários
político-partidários.
Feito o reparo, que para os juristas é importante, importa
salientar que as propostas eleitorais de grupos políticos extremistas contendem
com a nossa civilidade e cultura jurídicas, correspondem a regressões
inaceitáveis nas conquistas de direitos já consolidados e mergulham as
sociedades em conflitos que o Direito já há muito resolveu.
Ora, a prevenção deste tipo de comportamentos e o combate contra a
aceitação destas ideias começa na educação básica, na formação da
personalidade, na adoção de espírito crítico na avaliação de fatos e situações
e nos conhecimentos que permitem escolhas conscientes e livres. O Estado está a
fazer pouco nessa área e a investir menos na prevenção. A universidade tem aqui
um papel e a FDUL procura estar na linha da frente.
ConJur —Estamos vivendo um momento global de aumento dos casos
em que a Justiça interfere de forma intensa no debate político? Ou sempre foi
assim?
Eduardo Vera-Cruz Pinto — A politização da Justiça e a judicialização da
política são sintomas da fragilidade das instituições do Estado de Direito e do
insucesso das universidades na educação das elites que ocupam lugares de
destaque no Estado, nos vários poderes em que ele se divide. As faculdades de
Direito têm de fazer — a FDUL também — a autocrítica que se impõe numa situação
como esta.
Mas, além do problema que existe, também se verifica uma percepção do problema aumentada pela forma como a comunicação social informa e comenta. Logo, é preciso inserir a problemática em sociedades espetacularizadas, com um jornalismo “uberizado” — em profunda crise identitária — que nada ajuda a resolver o problema, por falta de interlocutor (ou pela dificuldade em o encontrar). Sem querer afirmar peremptoriamente que sempre foi assim, pode-se pelo menos dizer que há muito tempo que é assim e não é opção deixar que continue assim.
(...)