Constatação Sinistra | O Evangelho Segundo os Interesses Políticos da Bancada da Bíblia
Por Elstor Hanzen(¹)
Elstor Hanzen entrevista André Ítalo Rocha. Na imagem, foto de David Ribeiro/Câmara dos Deputados.
A política, que era coisa do diabo para os evangélicos no século
passado, hoje é o principal palco para candidatos da Bancada da Bíblia.
Jornalista e escritor, André Ítalo Rocha mergulhou na conexão que há entre
religião, política e poder. O resultado é a obra A bancada da Bíblia: uma
história de conversões políticas, que acaba de ser lançada pela
editora Todavia,
que mistura reportagem, ensaio histórico e análise política. Trata-se, além
disso, de um estudo contundente sobre essa força cada vez mais consolidada na
política brasileira. Nesta entrevista ao Extra Classe, ele revela
bastidores e aprofunda a relação entre poder, política e religião. Ele ainda
esclarece por que o poder dos evangélicos é menor nos municípios do que na
espera estadual e federal.
Na visão do autor, a Bíblia e Deus têm sido potentes instrumentos
para o poder econômico e político nos últimos tempos. “No Brasil, a direita
cristã e a direita econômica têm andado de mãos dadas. Basta ver o apoio que
alguns pastores, aliados de Bolsonaro, têm dado a Elon Musk nos seus embates
com o STF”. Desde o primeiro pastor eleito em 1962, religião e política não
param de se fundir no Brasil.
André ressalta que antes da Constituinte os pentecostais eram
avessos à política. Diziam ser coisa do diabo. “Com a Constituinte, eles
resolveram se mexer, porque já era uma parcela maior da população e tinham medo
de que a Constituinte os fizesse perder a liberdade de culto, acreditando no
boato de que o catolicismo voltaria a ser a religião oficial do estado”,
explica.
Só na eleição de 2022, por exemplo, foram eleitos 94 deputados evangélicos, sendo que alguns poucos deles são de esquerda e não se alinham às pautas da bancada. O jornalista afirma que a Bancada Evangélica não é apenas uma organização ideológica, “mas também uma bancada bastante pragmática, aberta a negociações, ao fisiologismo e bastante aderente a qualquer governo, seja de esquerda ou de direita”.
Extra Classe – Como surgiu a ideia de pesquisar e contar a relação entre religião, política e poder?
André Rocha – Começou como uma curiosidade jornalística. Eu acompanho as
notícias sobre as pautas em discussão no Congresso que interessam à bancada
evangélica e comecei a me perguntar quando e como começou todo esse engajamento
dos evangélicos na política. Procurei trabalhos acadêmicos e percebi que havia
uma história pouco explorada: a do primeiro pastor eleito deputado com o apoio
da sua igreja, o Levy Tavares, da igreja O Brasil Para Cristo, eleito por São
Paulo em 1962. Tudo que havia sobre Levy era muito vago. Descobri em 2017 que
ele ainda estava vivo e morava no centro de São Paulo. Pedi uma entrevista e
ele topou. Ali eu senti que poderia começar um livro sobre os evangélicos na
política. Eu já tinha encontrado o primeiro personagem. Dali em diante, fui
atrás dos outros, até reconstruir toda a história.
EC – O que mais chamou a atenção na imersão neste tema?
André – Aquilo que ficou mais claro para mim durante a pesquisa é que a
bancada evangélica não é apenas uma bancada ideológica, mas também uma bancada
bastante pragmática, aberta a negociações, ao fisiologismo e bastante aderente
a qualquer governo, seja de esquerda ou de direita. Na primeira Era Lula, por
exemplo, os deputados evangélicos votavam na maioria das vezes alinhados à
posição do governo. No primeiro mandato de Dilma, também. Só começaram a
desembarcar quando Dilma foi perdendo popularidade e virando alvo do jogo
político que resultou no impeachment. A maioria dos deputados evangélicos
pertence a partidos do Centrão, então há bastante disponibilidade para sentar e
conversar. É claro que eles são mais ideológicos quando a pauta é ligada a
costumes e a religião, mas mesmo nessas pautas há a possibilidade de
envolvê-las em negociações políticas, como ocorreu com o projeto do aborto
discutido no primeiro semestre, em que o deputado Sóstenes, ligado a Silas
Malafaia, admitiu que o presidente da Câmara, Arthur Lira, havia prometido a
ele que pautaria o projeto, em troca de apoio nas disputas para sucessão no comando
da Câmara.
EC – Religião e política têm uma interligação histórica, e os
pentecostais conseguem aproximar melhor a região à política? De que
forma?
André – O curioso é que antes da Constituinte os pentecostais eram avessos
à política. Diziam que política era coisa do Diabo. Entendiam que a política
era algo mundano depois, e diziam que o crente que se metesse com política iria
se desviar da fé. Isso, na verdade, era resultado de uma série de fatores, como
o fato de que as primeiras igrejas pentecostais do país, como a Assembleia de
Deus e a Congregação Cristã, foram trazidas por imigrantes que, por serem
estrangeiros, evitavam a política. Mas também porque, na primeira metade do
século XX, o catolicismo ainda era muito ligado ao estado, e os pentecostais
preferiam se manter distantes da política para evitar perseguições, uma vez que
eram ainda uma parcela muito pequena da população. Com a Constituinte, eles
resolveram se mexer, porque já era uma parcela maior da população e tinham medo
de que a Constituinte os fizesse perder a liberdade de culto, acreditando no
boato de que o catolicismo voltaria a ser a religião oficial do estado. Tinham
receio também de que, com o fim da ditadura, a esquerda aprovasse pautas
progressistas demais, e por isso resolveram agir, para oferecer resistência no
Congresso.
EC – Há um uso extrativista da região pela política?
André – Acredito que sim. Existem deputados evangélicos que não têm uma
agenda cristã no dia a dia do seu mandato, porque têm outras prioridades, mas,
quando chega a época de campanha, apelam para temas de costumes, sensíveis aos
fiéis, para conseguir um número maior de votos. Muitos deles sabem que, se não
usarem a religião, não serão eleitos.
EC – O movimento de extrema direita usa melhor a gramática religiosa
do que a esquerda?
André – Sim. Mas talvez isso não seja algo para se orgulhar. O ideal
seria que tanto a esquerda quanto a direita se concentrassem no debate de
pautas que vão de fato melhorar a vida econômica da população, inclusive os
deputados religiosos. Basta lembrar que as igrejas, católica ou as evangélicas,
têm historicamente uma preocupação com os mais pobres, com a justiça social.
Mas em vez de seguirem por esse caminho, preferem explorar as pautas de
costumes, que provavelmente vão atrair mais votos nos templos.
EC – Bíblia e Deus estão sendo usados com propósitos político e
econômico?
André – Sim. Inclusive é interessante notar que, no Brasil, a direita
cristã e a direita econômica têm andado de mãos dadas. Basta ver o apoio que
alguns pastores, aliados de Bolsonaro, têm dado a Elon Musk nos seus embates
com o STF.
EC – Qual a estratégia de converter fiéis e eleitores?
André – Os candidatos evangélicos de direita basicamente concentram
suas campanhas nos templos das igrejas, e procuram despertar a atenção dos
fiéis ativando medos históricos. Um dos medos históricos dos evangélicos é
perder a sua liberdade religiosa e de culto. Temem que um dia o Brasil volte a
ser como no tempo do catolicismo hegemônico, em que os evangélicos eram
tratados como membros de seitas fanáticas. Até mesmo a pauta do casamento entre
pessoas do mesmo sexo pode ser usada para ativar esse medo. Alguns candidatos
dizem que a esquerda quer que os pastores não possam dizer certas coisas no
púlpito, que poderiam ser classificadas como homofóbicas. Na campanha, eles
alegam que isso seria restringir a liberdade de culto.
EC – Bíblia e religião são formas de estabelecer “verdades” para a
maioria das pessoas, por isso é usado tanto por pastores como por coaches?
André – Sim. Não por acaso, temos visto figuras como Pablo Marçal,
que recorre a elementos da estética evangélica, atraindo o voto evangélico em
São Paulo.
EC – A bancada da Bíblia tem 228 congressistas na atual
legislatura. É uma poderosa e milionária máquina evangélica de fazer política,
mais poderosa do que a do agronegócio?
André – O número de membros da bancada evangélica na verdade é bem
menor do que esse. O número que você cita é o de membros da Frente Parlamentar
Evangélica, que inclui também congressistas não evangélicos, porque a Frente
precisa de um número mínimo de assinaturas para ser criada, e só os deputados
evangélicos não seriam suficientes. Então outros deputados de direita ou de
centro, não evangélicos, acabam ajudando. Na eleição de 2022, foram eleitos 94
deputados evangélicos, sendo que alguns poucos deles são de esquerda e não se
alinham às pautas da bancada, como o pastor Henrique Vieira, do Rio de Janeiro.
Eu não saberia cravar se eles são mais fortes que a bancada do agro, talvez
essa comparação oscile de uma legislatura para outra, mas certamente são duas
grandes forças da política, que não podem ser ignoradas pelo presidente da
República.
EC – O poder dos evangélicos na política municipal e estadual é
menor do que na federal ou não? Por quê?
André – É sim. Isso acontece porque o Congresso Nacional é um espaço
onde pautas de classe são mais discutidas. Nas câmaras de vereadores e assembleias
estaduais, as discussões são mais relacionadas a problemas locais, como o
buraco de rua no asfalto e a escola sem professor. Em Brasília, as pautas são
mais relacionadas a questões mais amplas, o que favorece bancadas ligadas a
segmentos da sociedade, como a da Bíblia.
EC – A grande presença da religião na política, como os
evangélicos, tende a corroer o estado laico e a democracia?
André – Acredito que isso é algo que deve ser monitorado, mas sem
pânico. Os evangélicos, como qualquer segmento da sociedade, têm todo direito
de se mobilizar politicamente. Seria antidemocrático dizer que os evangélicos
não deveriam se envolver na política. E seria elitista achar que eles são
ignorantes e por isso não deveriam se envolver. Além disso, os evangélicos são menos
de 20% da Câmara, eles não conseguem, sozinhos, aprovar qualquer projeto.
Precisam do apoio de outros segmentos. Para eles terem uma parcela maior no
futuro, precisariam que a população evangélica também crescesse, o que deve
acontecer, mas de maneira lenta, sem a mesma velocidade de décadas anteriores.
E mesmo crescendo, não necessariamente significa que a população ficará mais
conservadora. As igrejas não vão conseguir crescer muito se seguirem muito
restritivas em costumes. Em Brasília, quem está do lado contrário aos
evangélicos tem o dever político de se organizar também para fazer oposição
dentro do jogo democrático, em vez de querer tirá-los do jogo. Aqueles que se
opõem aos evangélicos deveriam cobrar, por exemplo, que os evangélicos tragam
pautas que estejam menos relacionadas à vida privada das pessoas e mais a
questões de interesse público, que afetem a saúde e o bem-estar das pessoas. E
também é importante fiscalizar as campanhas, porque muitos deputados
evangélicos são eleitos fazendo campanha em igreja, o que é proibido pela lei.
(...)