segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Anistia: Jurista Lenio Vai Direto ao Ponto! Quando se Mata os Pais e se Pede Clemência por ser Órfão!

Anistia: Jurista Vai Direto ao Ponto! | Quando se Mata os Pais e se Pede Clemência por ser Órfão!

Por Lenio Luiz Streck(¹)

Argumento de que a Constituição não veda anistia a golpistas revela casuísmo jurídico e ameaça a democracia! Ponto.

A moda no jornalismo e em parte da comunidade jurídica é dizer: sou contra a anistia, mas é constitucional; já o articulista Demétrio Magnoli crava na Folha de S. Paulo: “Anistia não é legal, mas é legal”.

A discussão acerca da constitucionalidade da anistia para os golpistas condenados gera, dia a dia, novos elementos. Novos artigos, novas descobertas.

A nova é: sou contra a anistia, abomino-a, mas a Constituição não proíbe. A adversativa “mas”. Salvadora. Assim disse um conhecido jornalista da GloboNews. Há também um advogado-professor, na mesma emissora, que diz a mesma coisa: veja, sou contra a anistia, mas a CF não proíbe. Ah: ele também sustenta a constitucionalidade da PEC da Blindagem. Afinal, o que não é proibido é permitido…

Genial, não? Fazer o quê? Não é legal, mas é legal…!

Minha pergunta ao Demétrio e quejandos: quando, durante 2016, 17, 18 e 19, discutíamos a presunção da inocência (ADC 44, 43 e 54), em que sustentávamos o cumprimento da Constituição na sua explicitude (e não na sua negativa!!!), Demétrio abominava a “clareza da CF”. Já sobre o que pensava o professor não há registros. Demétrio, por exemplo, não disse, à época, que a presunção não era legal, mas era legal… (porque ele, pessoalmente, trabalhou contra a presunção da inocência).

Relembro que Demétrio, em diversos textos e comentários públicos, argumentou que a interpretação estrita da presunção de inocência, que exige o trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena, favorece a impunidade, especialmente em um cenário de lentidão do sistema judiciário brasileiro.

Isto é, sabemos o que você(s) fizeram no verão passado.

Sigo. Afinal, a nova moda é: se a CF não veda, quem pode proibir? Argumento insuperável, não é?

Só que a polêmica é falsa. Explico.

Vamos aos fatos: não é verdade que a CF não proíba. Aliás, há muitas coisas que a CF não proíbe. Aqui, a combinação dos incisos XLIII e XLIV do artigo 5º, com o artigo 60 (cláusulas pétreas), deixa explícita a proibição. Além disso, há o artigo primeiro da CF. O poder emana do povo e não de um golpe de Estado.

Constituição é um sistema que não admite autocontradição

Porém, deixemos de lado a discussão sobre vedação explícita — porque desnecessária. A interpretação da Constituição deve estar inserida na sistemática do que se entende por Direito e sua função.

Há coisas que não precisam ser escritas. E às vezes nem estavam no radar do legislador. Por exemplo, o Código Civil de 1900 da Alemanha não falava do tráfego aéreo — afinal, o avião não havia sido inventado.

E a CF/88 não estabeleceu capítulo sobre golpe de Estado e sua punição. Interessante: a CF não proíbe golpe de Estado. Logo, seria permitido?

Nem sobre consumo de drogas. E a CF também não contém a advertência: “esta Constituição não pode se autocontradizer”. Afinal, nenhuma democracia comete haraquiri — e isto não precisa ser referido.

Por isso, não se pode admitir argumentos textualistas do tipo “a CF não proibiu anistia a quem tenta derrubar a democracia com violência, logo, é permitida”. Esse argumento é o mais raso que se tem na hermenêutica. Chega a ser um truísmo.

Vamos exemplificar: o Direito é composto por regras e princípios (padrões interpretativos escritos e não escritos). Não está na CF e nem na lei o princípio da insignificância, mas todos os dias o aplicamos; o furto famélico não tem previsão, mas se aplica; todos os dias os tribunais aplicam o famoso venire contra factum proprium (ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza), aliás, bem encaixável para os golpistas, eis que:

*cometem o crime de golpe (torpeza);
*depois pedem clemência (anistia) para se beneficiarem;
*subvertem a ordem constitucional e, depois, buscam recorrer à ordem constitucional para escapar às consequências de terem tentado subverter a ordem constitucional.

É acaciano.

Por isso, o título deste artigo é “quando se mata os pais e depois se pede clemência por ser órfão”. Isso é velho. Começa no caso Riggs v. Palmer, nos EUA, em 1895. O neto mata o avô para ficar com a herança (havia um testamento); a lei não previa (não proibia) que alguém que matasse o testador não pudesse receber o que estava testado. O tribunal ferrou com o neto, usando o venire contra factum proprium. Não estava na lei nem lá, nem cá. Mas usaram. E usamos. Pelo raciocínio dos pregadores da constitucionalidade da anistia, deveríamos parar de aplicar a insignificância e o venire contra factum proprium. Aliás, nem o controle de constitucionalidade difuso (judicial review) estava escrito na Constituição americana. Interessante: o precedente Marbury v. Madison (1803) é o mais utilizado no mundo.

Anistia e o promotor que denunciou Gulliver por salvar a rainha: crítica ao textualismo feita já no século 18

A tese de que a anistia (qualquer delas, a ampla e a light) é constitucional porque a Constituição não proíbe (sic) é nitidamente textualista. E falsa. A literatura faz blague com o textualismo (interpretação ao pé da letra, se quiserem entender melhor). Nas Viagens de Gulliver, o promotor processa Gulliver por ter urinado no palácio. A lei dizia: urinar em prédio público, pena de morte. Ocorre que Gulliver urinou no palácio para salvar a rainha. Veja-se o textualismo raso ironizado por Swift. Se confrontado com a discussão da anistia, Swift daria belas gargalhadas sobre “anistia não está proibida, logo…”.

Shakespeare faz o mesmo, em Medida por Medida. O personagem Ângelo, que substitui o Duque, condena à morte Cláudio, usando uma lei que nunca fora aplicada, que dizia: fornicar antes do casamento, pena de morte. Logo depois, o mesmo Ângelo se transforma em um voluntarista, prometendo a libertação de Cláudio se a sua irmã com ele fornicasse.

São coisas elementares na hermenêutica. Mesmo numa perspectiva textualista-positivista — que Ferrajoli, ao rejeitá-la, chama de paleojuspositivista —, a norma isolada nada quer dizer. Se há um truísmo no direito[1] é o de que não se interpreta em fatias. Já o literalismo é autocontraditório, como no exemplo da proibição de cães no parque e, com isso, o juiz possa proibir o cão-guia do cego. E permitir jacarés. O princípio da não contradição aristotélico não precisa estar escrito na Constituição. E nem no regimento interno do Parlamento.

Essa discussão tem de ser feita à luz do sistema constitucional e do significado da democracia. Esses elementos é que dão o sentido às normas em debate. Há uma coisa chamada hermenêutica da função, que advém de uma junção de minha leitura de Wittgenstein, Fuller e MacIntyre. Não preciso dizer certas coisas, se o sentido advém de um raciocínio lógico. Se eu proíbo cães, tenho de ver o telos (Aristóteles). Não posso chegar ao sentido contrário ao da própria lei.

Isto quer dizer: em nome da democracia e da Constituição, não posso interpretar o fenômeno jurídico de forma antitética ao seu telos. Seria como aceitar dar clemência ao pobre órfão que perdeu os seus pais, ignorando que foram mortos pelo próprio “órfão”. Direito não pode ser um conjunto de argumentos falaciosos. Isso é antijurídico.

Nunca esqueçamos da turma que pretendeu interpretar o artigo 142 da CF, dando-lhe o sentido de que o poder moderador estava a cargo das Forças Armadas.

Legalismo ad hoc ou conveniente que não resiste a uma adequada hermenêutica da Constituição

Para além do equívoco propriamente dito (a CF contra a própria CF), há outro grande problema para os que defendem a tese textualista de que a anistia não está proibida: a coerência. Nas práticas jurídicas vemos, por exemplo, que o livre convencimento continua a ser praticado até mesmo para fulminar recursos das partes.

Só que o CPC expungiu a palavra “livre” do artigo 371, por emenda supressiva durante o processo legislativo! Por que, nesse caso, o textualismo não vale? Quantos embargos já foram fulminados desde 2018, quando o CPC entrou em vigor? Veja-se, assim, um exemplo que desmonta a tese exegético-textualista.

Não podemos cair em um certo legalismo de conveniência, raso e sem autoconsciência, que transporta uma espécie de “soberania do parlamento” a uma ideia de “vale tudo”. E trata isso como se fosse o “default”, óbvio, da interpretação constitucional. Não é. Porque a filosofia já demonstrou há muito que não há subsunção. Aplicação mecânica. Logo, uma espécie de textualismo literalista deve ser defendida como argumento, porque também é uma postura interpretativa.

Que não se sustenta. Porque é anti-histórica e anti-filosófica. Mas que fosse: que se a defendesse como o que é, uma opção teórica. Só que não o fazem. É simplesmente casuísmo. Defenderiam anistia se fosse uma invasão feita por comunistas, anarquistas, enfim? Ou, melhor dizendo, o que diriam se parlamentares de esquerda se movimentassem para anistiar invasores comunistas, anarquistas, enfim? Será que não diriam que o sentido original da Constituição proíbe? Perguntas. Cartas para o articulista e para a Coluna Senso Incomum.

Numa palavra, ainda, para além das ironias de Swift e Shakespeare sobre o textualismo e seus problemas, lembro aqui do caso de 1866 envolvendo os escravos Lino e Lourenço, na Comarca de Rio Pardo (RS)[2]; também já escrevi sobre o caso da escrava Honorata, estuprada pelo “seu senhor”, em que o promotor supera o textualismo e denuncia o estuprador (a lei dizia que o escravo só poderia ir a juízo por meio de seu dono). É a história nos dando lições!

Post scriptum: a tal da anistia light do Paulinho da Força e o duplo haraquiri

A vergonha não está apenas na anistia 4.0 (essa que não é legal, mas é legal — sic!!). Sobre essa falei acima. A vergonha reside também na eventual ANISTIA LIGHT (anistia 1.0?), pela qual se faria (ou fará), via legislação, a redução das penas dos crimes de tentativa de golpe e abolição violenta. Um rebaixamento de nossa própria dignidade, digo eu, que ajudei a elaborar a lei de defesa.

Assim, o crime de tentativa de golpe ficaria com pena de 2 a 8 anos e o de abolição de 2 a 6 anos. Também haveria uma (inacreditável, porque bizarra) proibição (sic) de somar os dois crimes. Pergunta-se: a proibição de usar o concurso material seria só para esses crimes? Milhares de pessoas presas no sistema prisional por causa de concurso material também serão beneficiadas? Ou só os golpistas?

Explicando: no Brasil, vingando o projeto de anistia light (cujo nome foi trocado para projeto da redução das penas — sic), capitaneado por Paulinho da Força, Hugo Mota, Michel Temer, Aécio Neves, dentre outros, teremos o seguinte: tentar dar golpes de Estado ou tentar abolir o EDD acarreta uma pena do tamanho (ou até menor) do que furtar um botijão de gás entre duas pessoas. É de rir. Ou chorar. Acreditem se quiser.

A vergonha não tem limites. Trata-se de uma desmoralização do direito. Podem chamar essa redução de penas do que quiserem. É anistia o que estão fazendo! A rosa não perde seu perfume se lhe trocarem o nome. Isso é elementar. O inusitado: querem fazer revisão criminal por meio de uma lei — e isto é desvio de finalidade. Inconstitucional às últimas!

Para se ter uma ideia da bizarrice: vingando o projeto, será mais grave adulterar um chassi de automóvel em coautoria do que tentar dar um golpe. Mais: receptar animais tem a gravidade de uma tentativa de abolição violenta do Estado Democrático. Isso é a sério?

Existem mais de 700 mil pessoas presas no Brasil. Pergunto ao Paulinho da Força e ao Temer:

“Haverá redução das penas de todo esse povo? Passaremos pano para golpistas e seremos duros contra os que cometeram furtos ou roubos de celulares ou fizeram contrabando de cigarros?”

Por que não fazem logo uma PEC para retirar da Constituição a isonomia? Ah, é cláusula pétrea. Pois bem. Mas por que a redução de penas, como desvio de finalidade de anistia, é possível?

Pior: o ex-presidente Michel Temer disse, em vídeo para todo o Brasil, ao lado de Paulinho da Força e Aécio Neves, que o governo estaria a favor desse acordo. Chegou a falar que o STF estaria de acordo com esse acordo (sic). Pedro Serrano deu uma forte resposta a isso, dizendo que:

“É um imenso erro. Tenho certas críticas às nossas togas que vivem, às vezes, interferindo em assuntos que não deveriam. O papel do Judiciário é aplicar a lei. Ponto. E aplicar a CF. Se há uma PEC ou um projeto de lei que seja inconstitucional, cabe ao Judiciário declarar inconstitucional. Não tem que ficar participando de negociações.”

Se é verdade o que se disse — e se o que Temer disse faz algum sentido —, tratar-se-á de um haraquiri da democracia brasileira. Não quero acreditar nisso.

Na realidade, estamos em face do perigo de dois haraquiris: uma anistia 4.0 é um haraquiri da democracia feito pelo Parlamento; uma anistia 1.0, com acordo do governo, é um haraquiri governamental — que até agora não desmentiu Paulinho da Força. De todo modo, meu senso republicano não deixa acreditar, nem um pouquinho, na fala de Temer, de que haja a participação do STF. Sou um otimista.

E nada mais há a falar. Apenas que quem mata os pais não pode pedir clemência pela orfandade. Em nome da democracia, queriam o seu fim (talvez porque não está proibido pela CF acabar com a democracia!!!); agora, em nome da mesma democracia, querem o autoperdão. Bizarro.

[1] Cf. A Anistia e Aberração Sistêmica. Correio Brasiliense, 14 de setembro de 2025 (Lenio Streck, Pedro Serrano e Mauro Menezes).

[2] Escrevi na Revista Brasileira de Direito Civil Contemporâneo, sob o título “Dois casos na escravatura dos Estados Unidos e do Brasil: perspectivas do direito civil e do direito constitucional”, v. 16, p. 41-60, 2018.

(...)