O argumento
ontológico abdutivo de Dallagnol
Ou da
falácia do uso da conclusão como premissa
Por: Gilberto Miranda Júnior
O termo
“ontológico” atribuído ao argumento sobre a existência de Deus foi cunhado por
Kant, que entendia ontologia como uma filosofia transcendental à priori, ou
seja, aquela que dispensa a experiência sensível ou empírica para definir o
próprio saber. Anselmo de Canterbury (santo católico que viveu entre 1033 a
1109) possui o argumento ontológico mais famoso, estudado e comentado ao longo
dos tempos. Anselmo parte da premissa (mesmo que não fique tão evidente em seu
texto original apresentado nos capítulos II e III de seu “Proslogium”, escrito
em 1078) de que a existência é superior a inexistência.
Desse ponto, segundo
sua definição de Deus (como o SER mais perfeito e superior do universo),
conclui que Ele tem, necessariamente (uma necessidade lógica), de existir. Uma
lógica impecável, obviamente: se seres existentes são superiores a seres
inexistentes, e se Deus é o ser superior a todos, logo ele necessariamente tem
de existir. Não aceitar essa conclusão é incorrer em contradição.
Todo o
problema desse tipo de argumento centra-se no fato de se usar aquilo que se
quer concluir como premissa. Para que Deus seja visto como superior a todos os
seres, é preciso já admitir sua existência, para depois afirma-la como
conclusão. Esse tipo de argumento funciona como um jogo de cartas marcadas,
onde se manipula com uma marca a carta que precisa ser encontrada no final para
se ganhar o jogo. No limite, é um raciocínio capcioso, uma empulhação, uma
desonestidade intelectual. Isso não significa que Deus não exista. Significa
apenas que as razões dadas para sua existência, nesse caso, não são
suficientes.
Nota-se que
em geral, todo raciocínio de cunho religioso carrega essa distinção
argumentativa. Primeiro dispensa-se a necessidade de qualquer demonstração
empírica do que se quer demonstrar. Em seguida, munidos de uma premissa que já
pressupõe a conclusão a que se quer chegar, declara-se a conclusão como se o
fato dela não ter sido diretamente mencionada nas premissas, fosse algo novo e
necessariamente lógico. Podemos, ao ouvir, ficar com uma sensação incômoda de
que fomos enganados, mas se caso a conclusão for ao encontro do que já cremos,
essa sensação é logo abafada e passamos a reproduzir a forma de pensar sem
maiores problemas.
Pensadores
como Descartes, Spinoza e Leibniz fizeram variações do argumento ontológico,
porém a estrutura do raciocínio sempre foi a mesma. Descartes em suas Meditações
Metafísicas dedicou-se a esse tema e tentou provar a necessidade da
existência de Deus para que faça sentido a própria existência do mundo externo
ao nosso pensamento. Em resumo: se é possível imaginar um ser perfeito em todos
os sentidos e que, na perfeição, a existência é um atributo lógico, então Deus,
que é perfeito em todos os sentidos, necessariamente, existe.
Talvez não
pelo fato de ser membro da Igreja Batista (embora esse fato possa ter
influenciado), o promotor Deltan Dallagnol usa do mesmo tipo de raciocínio para
desenvolver a acusação contra Lula. No entanto, olhando seu Currículo Lattes, constatamos que o mesmo se especializou
na Harvard Law School em um curso chamado “The Best Explanation of
Circumstantial Evidence”. Ou seja, sua especialidade parece ser a de determinar
a melhor explicação possível para evidências circunstanciais.
Ao lermos a peça
acusatória fica claro que, se usada sua expertise acadêmica naquilo
que apresentou na denúncia, podemos concluir que, para o promotor, a melhor
explicação para um conjunto de evidências circunstanciais será amealhar aquelas
que possam confirmar uma crença anterior na culpa de alguém. Isso é
problemático demais e equivale a usar um argumento ontológico para a existência
da culpa.
No ano em
que cursou Harvard, Dallagnol apresentou um projeto de pesquisa sobre “Melhor
explicação da prova indiciária”, com ênfase em provas indiretas e diretas
através das “lógicas que guiam o raciocínio probatório”. No curso que fez e no
projeto de pesquisa que apresentou há estudos sobre dedução, indução, analogia
e inferência para a melhor explicação (chamada IME, mas conhecida também por
abdução). No projeto ele conclui que “a prova, inclusive a circunstancial, é
melhor compreendida a partir de óculos abdutivos, isto é, via argumentos
guiados pela inferência para a melhor explicação”. Mas a questão que se abre é
até que ponto a compreensão de uma prova circunstancial lhe daria materialidade
para uma condenação?
O pensamento
abdutivo que foi clarificado por Charles Peirce se constitui a essência de seu
pragmatismo. Hoje, compõe um dos três tipos de raciocínio lógico para o
estabelecimento de hipóteses científicas junto com o raciocínio dedutivo e o
indutivo. No entanto seu uso tem elementos característicos.
Enquanto o
pensamento dedutivo infere casos particulares a partir de um todo conhecido e o
pensamento indutivo infere um todo a partir da generalização de casos
particulares conhecidos, Peirce considera a abdução como um juízo intuitivo que
serve como primeiro estágio de toda investigação científica. Ou seja, a abdução
vai reunir elementos novos que podem, hipoteticamente, ser a explicação para um
fenômeno, de forma que essa ligação possa ser submetida à indução ou dedução
como forma de especificação causal do fenômeno.
Cientificamente, no entanto,
todo esse aparato racional só será validado a partir da corroboração empírica
das hipóteses. O circunstancial deixa margem para dúvidas e, no caso de
dúvidas, a vantagem sempre é do réu, conforme reza os princípios do direito.
Ao se
dispensar a necessidade de corroboração material ou empírica e transformar a
hipótese abdutiva como a essência do fenômeno, Dallagnol propõe que aceitemos
algo como um argumento ontológico abdutivo, por mais que isso encerre uma clara
contradição entre termos.
Ele quer nos fazer crer que todo o esquema de
corrupção na Petrobrás, necessariamente, precisaria ter um chefe maior, e se
Lula era o presidente à época e pode ser visto como um elemento comum entre os
envolvidos com o esquema (por favor, esqueça aquele Power Point), logo Lula, necessariamente,
é o chefe maior do Petrolão.
Curiosamente,
porém, Lula não é acusado por esse suposto crime, embora tenha sido demonstrado
por argumento ontológico que o crime não existiria sem Lula. Porém, com base
nele, o nosso ilustre promotor chega à conclusão que o tríplex no Guarujá,
sendo da OAS e despertando em 2014 o interesse de compra de Lula, então se
trata de um bem doado ilicitamente fruto da corrupção.
Não importa que não haja
prova material dessa afirmação. Importa é que ela é logicamente necessária para
se confirmar a metafísica que dá condições para que a realidade atenda os
desejos do procurador. O fato de não haver como provar a propriedade do bem
atribuída ao acusado, para o promotor, se constitui em prova de que houve a
intenção de escondê-la. Carl Sagan estaria se revirando ao túmulo por ver
deturpada sua famosa frase: “ausência de evidências não significa evidência da
ausência”.
Se o
envolvimento de Lula no Petrolão só é atribuível a partir de um argumento
ontológico que insere a conclusão nas premissas, e se a ligação de Lula com o
tríplex, a partir desse argumento base, é fruto de um raciocínio abdutivo,
ainda estamos diante de uma hipótese a ser corroborada materialmente. Jamais
seria considerado fato em qualquer pesquisa científica ou pensamento
epistemológico, mas no direito brasileiro é.
Nossa análise, obviamente,
centra-se na argumentação do promotor e não na pertinência jurídica da peça.
O grande
problema de tudo o que foi apresentado é que no âmbito jurídico é o Juiz quem
decidirá qual tipo de instrumento probatório é mais conveniente para ele, de
acordo com suas convicções. Não há, na Lei brasileira, hierarquia de provas.
Distinto do direito em outros países, a materialidade da prova não é,
necessariamente, superior a uma abdução, pois é o juiz quem decide que prova
acatar. Mesmo com a obrigatoriedade de justificar sua escolha, a ausência de
provas materiais sobre um fato não tira a capacidade probatória de uma abdução,
mesmo que ela seja baseada em um argumento ontológico, como nesse caso.
Embora os
promotores não tenham dito na mesma sentença a frase que tem sido fruto de
diversos memes na internet (“Não tenho provas, mas tenho convicção”), ela
reflete mesmo o que está em jogo.
A confissão de ausência de prova cabal e a
convicção inabalável na versão construída dos fatos foram ditas ao longo do
discurso da promotoria.
A questão a ser respondida é se essa convicção foi
construída a partir do raciocínio abdutivo (inferência da melhor explicação — IME)
ou se o raciocínio abdutivo foi construído a partir de uma convicção já
existente.
A resposta está no flagrante uso da falácia embutida no argumento
ontológico, onde, necessariamente, a conclusão faz parte das premissas, gerando
uma tautologia disfarçada.
Essa brecha
para meras convicções em nossas Leis nos deixa à mercê de elementos ideológicos
e políticos nos julgamentos, ou seja, à mercê da subjetividade de alguém cujas
motivações estão ocultas, embora no caso de Sérgio Moro, estejam mais do que
reveladas.
A crescente politização do pensamento religioso não está apenas em
projetos como o Escola Sem Partido, mas está presente maciçamente no Congresso
e em nosso Judiciário. Laico, nosso estado apenas é no papel. O próprio sistema
que molda e sequestra nossas instituições a seu favor tem como elemento
substancial a ética protestante, como nos denunciou Max Weber já há mais de 150
anos.
Portanto,
podem esperar, apesar do Power Point tosco e da mera convicção dos procuradores,
que não só a acusação contra Lula seja aceita, como sua condenação após rápido
julgamento. As cartas estão marcadas desde há muito, independente de sua culpa,
o que jamais deixará de ser uma possibilidade concreta.