Entenda a Venezuela hoje sabendo como era antes da “revolução bolivariana”
por Marcelo Zero
I– Antecedentes
Não é possível se entender a atual crise da Venezuela e
tampouco o regime chavista sem se compreender como era esse país antes da
“revolução bolivariana” e qual o seu significado geopolítico para os EUA.
A Venezuela está sentada na maior reserva provada de
petróleo do mundo. São 298,3 bilhões de barris, ou 17,5% de todo o petróleo do
mundo. Este petróleo está a apenas 4 ou 5 dias de navio das grandes refinarias
do Texas. Em comparação, o petróleo do Oriente Médio está entre 35 a 40 dias de
navio dos EUA, maior consumidor de óleo do planeta.
Essas imensas reservas começaram a ser exploradas no governo
de Juan Vicente Gómez (1908-1935).
A renda gerada pela produção e exportação de hidrocarbonetos
possibilitou a construção de uma infraestrutura viária e portuária, assim como
permitiu a implantação de aparelho de Estado centralizado, que substituiu uma
administração fragmentada e difusa.
Contudo, essa consolidação do Estado Nacional venezuelano
embasou-se apenas na exportação de petróleo para o mercado norte-americano, o
que levou à Venezuela a desenvolver “relações privilegiadas” com os EUA. Tal
vinculação econômica e política marcou profundamente a política externa da
Venezuela, bem como sua política interna.
Na década de 50 do século passado, a Venezuela já havia se
convertido no segundo produtor e no primeiro exportador mundial de petróleo. No
entanto, essa notável afluência econômica, obtida numa relação de estreita
dependência com os EUA, não se refletia na diminuição de suas graves
desigualdades sociais, na diversificação de sua estrutura produtiva e na
implantação de um regime democrático estável. Tampouco numa política externa
que combatesse seu alto grau de dependência.
Na realidade, esse processo econômico e político marcado por
tal profunda dependência resultou em três grandes consequências que têm de ser
levadas em consideração em qualquer análise séria sobre a Venezuela:
1) Um sistema político formalmente democrático, porém
profundamente oligárquico.
2) Uma política externa avessa à integração regional e a uma
articulação com outros países periféricos.
3) Uma estrutura social marcada pela desigualdade e a
pobreza.
a) O sistema político oligárquico
Em 1957, foi celebrado o Pacto de Punto Fijo, articulado
pelos EUA, pelo qual os partidos tradicionais e conservadores aceitaram
alternar-se no poder, sem permitir a entrada de novos partidos. O objetivo,
para os EUA, era garantir alguma estabilidade política na Venezuela, diante de
sua importância como fornecedora de petróleo.
A realização de eleições presidenciais periódicas apenas
entre os dois partidos conservadores (Ação Democrática-AD, de orientação
socialdemocrata, e o Comitê de Organização Política Eleitoral
Independente-COPEI, de tendência democrata-cristã), fez com que a Venezuela
fosse apresentada como um exemplo raro de “democracia na América do Sul”.
Trata-se, é claro, de uma grosseira falácia. A bem da
verdade, o sistema político gerado pelo Pacto de Punto Fijo era muito
semelhante à política do “café-com-leite” da República Velha brasileira: por
trás de uma fachada de democracia, escondia-se um sistema fortemente
oligárquico.
Avalia-se que cerca de 50% da população teria sido excluída
do exercício do voto desde os anos 60. Como o registro eleitoral era
facultativo e como as zonas de inscrição estavam situadas apenas nas zonas mais
prósperas do país, a população mais pobre não participava, na prática, de
quaisquer decisões eleitorais.
Além disso, o federalismo venezuelano era profundamente
autoritário. Cabia ao Presidente da República nomear todos os governadores e
prefeitos biônicos, muitos dos quais hoje militam na oposição venezuelana.
Apenas em 1989 foram realizadas as primeiras eleições para
prefeitos e governadores. Não bastasse, eram comuns as prisões de jornalistas,
em razão da publicação de matérias que desgostassem o governo de plantão.
b) A política externa satélite dos interesses estratégicos
do EUA
A “estabilidade” democrática, ainda que conservadora, formal
e excludente, a afluência econômica proporcionada pelo petróleo e as relações
privilegiadas com os EUA, mesmo que eventualmente contraditórias, fizeram com
que Venezuela se isolasse do restante da América do Sul e dos demais países em
desenvolvimento.
Na década de 60, esse relativo isolamento foi exacerbado
pela aplicação, no plano das relações externas venezuelanas, da chamada
Doutrina Betancourt, criada em homenagem ao ex-presidente Rómulo Betancourt.
De acordo com essa doutrina, a Venezuela deveria restringir
o estabelecimento ou a manutenção de relações diplomáticas apenas a países que
tivessem governos eleitos democraticamente conforme regras constitucionais
estáveis.
Criada para agradar os EUA, pois justificava o isolamento
diplomático de Cuba, a doutrina Betancourt, porém, complicou as relações com
vários vizinhos da Venezuela aliados de Washington, inclusive o Brasil.
Assim, durante vários anos, a Venezuela recusou-se manter
relações diplomáticas com o Brasil, que vivia uma ditadura. Por uma ironia da
história, a “cláusula democrática”, que hoje o Brasil do golpe tenta impor à
Venezuela no Mercosul, já foi usada contra nós pelos venezuelanos
conservadores.
Após levar um “puxão de orelhas” de Washington, a Venezuela
flexibilizou sua cláusula democrática e passou a usá-la apenas contra Cuba,
contemplando os interesses dos EUA.
Esse isolacionismo da Venezuela, que privilegiava somente
suas relações bilaterais com os EUA, fez até que aquele país aderisse
tardiamente ao GATT, à Comunidade Andina e a outros organismos regionais e
multilaterais, numa demonstração de total falta de iniciativa própria no
cenário mundial.
Tal isolacioanismo dependente da Venezuela só começou a ser
parcialmente revisto ao final da década de 80, quando a relativa abundância de
petróleo no mercado internacional, que fez diminuir o preço dessa commodity,
somada à crise da dívida, que viria a atingir aquele país ao final do decênio,
produziu uma modesta mudança na estratégia de sua política externa.
De fato, a política externa isolacionista, baseada na noção
de uma suposta superioridade político-democrática, na afluência econômica do
petróleo e nas relações privilegiadas com os EUA, principal comprador dessa commodity,
passou a ser substituída progressivamente por uma estratégia de inserção no
cenário externo mais realista, na qual o Caribe e a América do Sul passaram a
ter lugar de destaque.
Contudo, mesmo com essa mudança modesta e parcial, a
Venezuela continuou a orbitar em torno dos interesses estratégicos do EUA na
região, constituindo-se, junto com a Colômbia, no seu aliado mais fiel.
c) A estrutura social marcada pela desigualdade e a pobreza
Antes do “cruel e ditatorial” governo bolivariano, a Venezuela,
o país com a maior reserva de óleo do mundo, tinha 70% de sua população abaixo
da linha da pobreza e 40% do seu povo na pobreza extrema. Isso diz tudo sobre
os governos anteriores.
Antes do governo de Chávez, em 1998, 21% da população
estavam subnutridos. É isso mesmo. No país que, como Celso Furtado escreveu em
1974, tinha tudo para se tornar a primeira nação latino-americana realmente
desenvolvida, 1 em cada 5 habitantes passava fome. Essa era a Venezuela dos
Capriles, dos López e da “oposição democrática”.
Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a
mortalidade infantil era de 25 por mil, em 1990, quase o dobro da brasileira de
hoje (13,8 por mil). Em relação à educação, apenas 70% das crianças concluía o
ensino primário e o acesso às universidades era restrito às elites e à pequena
classe média.
Além disso, o Estado de Bem Estar venezuelano tinha alcance
mínimo. Com efeito, na era pré-Chávez, apenas 387.000 idosos venezuelanos
tinham aposentadorias ou pensões. A maioria simplesmente vivia à míngua.
Desse modo, a Venezuela chegava ao fim do século XX com uma
contradição gritante e insustentável: apesar das grandes riquezas derivadas da
exportação de petróleo, o país convivia com problemas sociais muito graves.
Em 1989, no contexto de uma crise econômica, manifestações
populares se multiplicaram por todo o país.
Uma delas, o “Caracazo”, foi duramente reprimida pelo
Estado, cujas forças mataram indiscriminadamente entre 1000 e 3000 pessoas. Em
muitas ocasiões, as manifestações estudantis foram também reprimidas, tendo
sido ordenado o fechamento da Universidade Central da Venezuela, que durou três
anos, em 1968.
Durante vários meses, as favelas de Caracas foram cercadas
por forças militares e submetidas a toque de recolher.
Entretanto, isso não comoveu muito a “comunidade
internacional”, que hoje chora as cerca de 100 vítimas dos embates nas ruas da
Venezuela.
Afinal, eram apenas pobres e excluídos sendo submetidos a um
regular massacre na América Latina. Em todo caso, já estava claro, na época,
que o modelo econômico, social e político plasmado no Pacto de Punto Fijo tinha
atingido seu limite.
Pois bem, a eleição de Hugo Chávez, em 1998, se insere
justamente no colapso do Pacto de Punto Fijo: para uma população desprovida de
sistemas públicos includentes (saúde, educação, moradia, etc.), a plataforma
política de Chávez surgiu como proposta sem precedentes na história do país, o
que explica, em grande parte, a sua popularidade nas camadas historicamente
excluídas do povo venezuelano.
Embora o chavismo não tenha alterado, de forma
significativa, a estrutura produtiva da Venezuela, que permaneceu estreitamente
dependente das exportações do petróleo, Chávez implodiu as arcaicas estruturas
sociais e políticas da Venezuela, bem como a política externa de alinhamento
automático aos EUA.
A desigualdade, medida pelo índice de Gini, foi reduzida em
54%. A pobreza despencou de 70,8%, em 1996, para 21%, em 2010, e a extrema
pobreza caiu de 40%, em 1996, para 7,3%, em 2010.
O chavismo implantou as chamadas misiones, projetos
sociais diversificados e amplos que beneficiam cerca de 20 milhões de pessoas,
e passou a criar um verdadeiro Estado de Bem Estar Social na Venezuela. Hoje,
2,1 milhões de idosos recebem pensão ou aposentadoria, ou seja, 66% da
população da chamada terceira idade.
Na Venezuela pós-chavismo, a desnutrição é de apenas 5%, e a
desnutrição infantil 2,9%. Após o chavismo, a Venezuela tornou-se o segundo país da
América Latina (o primeiro é Cuba) e o quinto no mundo com maior proporção de
estudantes universitários.
Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a
mortalidade infantil diminuiu de 25 por mil, em 1990, para apenas 13 por 1000,
em 2010.
Atualmente, 96% da população já tem acesso à água potável.
Em 1998, havia 18 médicos por 10.000 habitantes, atualmente são 58.
Os governos anteriores ao de Chávez construíram 5.081
clínicas ao longo de quatro décadas, enquanto que, em apenas 13 anos, o governo
bolivariano construiu 13.721, um aumento de 169,6%. Barrio Adentro, o programa
de atenção primária à saúde que recebe a ajuda de mais de 8.300 médicos
cubanos, salvou cerca de 1,4 milhões de vidas.
Nove anos após as grandes inundações de 1999, que destruíram
centenas de e milhares de lares, o governo de Chávez deu início a um ambicioso
programa de habitações populares. Já foram construídas e entregues 2
milhões de casas. Trata-se, proporcionalmente, do maior programa de
habitação popular da América Latina.
Esses amplos e inegáveis avanços sociais fizeram daquele
nosso país irmão um modelo de cumprimento dos Objetivos do Milênio da ONU.
No campo da política externa, Chávez rompeu com o paradigma
anterior de país periférico e dependente e investiu na integração regional e no
eixo estratégico da geoeconomia e geopolítica Sul-Sul, com destaque para as
relações bilaterais com o Brasil, o que acabou conduzindo à adesão da Venezuela
como membro pleno do Mercosul, algo que nos beneficia muito.
A Venezuela chavista tornou-se uma grande parceira do
Brasil, comprando vorazmente nossos produtos e recompensando-nos com elevados
superávits comerciais e com forte apoio político à integração do nosso
subcontinente. Chávez era, sobretudo, um grande amigo do Brasil.
Ademais, Chávez estabeleceu relações próximas com Rússia,
China e Cuba e passou a apoiar experiências políticas que divergiam da ordem
mundial dominada pelos interesses dos EUA.
Em contraste com o isolacionismo anterior, Chávez fundou a
ALBA e criou a Petrocaribe, objetivando fornecer petróleo a preços convidativos
para os países daquela região. Isso explica porque a OEA, apesar dos esforços
febris dos EUA e do Brasil, não consegue aprovar uma resolução forte contra o
governo de Maduro.
Mas o principal mérito do chavismo foi ter implodido o
conservador e excludente modelo político venezuelano, baseado no Pacto de Punto
Fijo.
Com Chávez, assim como com Lula, Morales, Rafael Correa e
outros, aqueles que não tinham voz e vez passaram a se fazer ouvir e a se fazer
cidadãos. Passaram a comer, a se educar, a morar. Deixaram de ser invisíveis,
miseráveis anônimos, e passaram a ser sujeitos da história.
O chavismo, entretanto, foi além e organizou e mobilizou as
massas destituídas da Venezuela, bem como passou a dominar setores importantes
do aparelho de Estado, como as Forças Armadas e o poder judiciário. Isso acabou
privando as oligarquias venezuelanas de seus principais instrumentos de
intervenção política. São esses fatores que ajudam explicar a
radicalidade do atual processo político venezuelano.
II- A Reação
Como todos sabem, a reação das oligarquias ao chavismo não
tardou. Além do conhecido golpe de 2002, que quase resultou na execução de
Chávez, houve também o processo conhecido como “paro petrolero”, a suspensão
das atividades da PDVSA, a estatal do petróleo da Venezuela.
A suspensão das atividades da PDVSA, controlada então pelas
oligarquias venezuelanas, resultou numa contração do PIB de 18%, entre 2002 e
2003, inflação, carestia de produtos básicos, desemprego, aumento do risco
país, etc.
No país com a maior reserva de petróleo do mundo, houve até
falta de gasolina. O governo brasileiro, ao final de 2002, enviou navio
tanque com gasolina para suprir parcialmente a carência de combustíveis na
Venezuela.
O “paro petrolero” forçou o chavismo a intervir na PDVSA,
dominando-a, assim como o golpe de 2002 forçou o chavismo a controlar mais
fortemente as forças armadas.
Entretanto, essas ações antidemocráticas e destrutivas, das
quais participaram as atuais das oposições venezuelanas, como López, Capriles e
Ledezma são eloquentes da falta de compromisso real das oligarquias
venezuelanas com a democracia.
O “paro petrolero”, em particular, evidencia que tais
oligarquias não têm pruridos em arruinar a economia do país, desde que isso
signifique uma oportunidade para voltar a controlar o poder perdido.
Desde então, o processo político venezuelano permanece
bastante radicalizado.
Ainda assim, há de se constatar que o chavismo manteve seus
compromissos democráticos. Desde a ascensão de Chávez e a implosão do Pacto de
Punto Fijo, foram realizadas nada menos que 21 eleições, inclusive a de um
referendo revogatório. Todas elas limpas e internacionalmente auditadas.
Ademais, na Venezuela há partidos de oposição que funcionam
regularmente e imprensa livre, mesmo após a cassação da concessão do canal
RCTV, que articulou o golpe de Estado de 2002.
A crítica de que o chavismo controla setores do aparelho de
Estado, como o poder judiciário, por exemplo, não deixa de ser curiosa.
Na Venezuela, como em quase toda a América Latina, os
setores estratégicos do aparelho de Estado sempre foram fortemente controlados
pela direita. No entanto, tal controle nunca foi questionado como algo
antidemocrático.
Ao contrário, o caráter de classe desses segmentos estatais
sempre foi considerado como parte intrínseca e natural do modus operandi dos
sistemas políticos do subcontinente. O controle só se torna um “problema”
quando passa a ser exercido, ainda que parcialmente, pela esquerda.
Assim sendo, não se pode falar em quebra da ordem
democrática na Venezuela, apesar da radicalização do processo político e dos
graves problemas institucionais que acometem o país vizinho. A última vez em
que houve realmente quebra da ordem democrática na Venezuela foi no golpe
militar de 2002.
III- Desdobramentos Recentes
A situação da Venezuela atual é muito próxima da existente
no período 2002-2003.
Com a morte de Chávez, em 2013, a oposição radicalizada da
Venezuela, considerou que poderia derrotar facilmente o sucessor na revolução
bolivariana.
Entretanto, a vitória de Maduro sobre Capriles, ainda que
por pequena margem, frustrou as expectativas da oposição.
Pouco tempo depois, os setores mais radicalizados da
oposição venezuelana, liderados por Leopoldo López, iniciaram o processo
denominado de “la salida”, que consiste na utilização de manifestações
violentas de rua, com a formação de barricadas, as chamadas “guarimbas”,
incêndio de edifícios públicos e até mesmo de atos terroristas com o intuito de
derrubar o governo eleito.
Trata-se de uma estratégia que teve êxito na chamada
“revolução colorida da Ucrânia”, diretamente financiada e estimulada pelos EUA.
Essas manifestações, muito concentradas nos bairros do leste
de Caracas e algumas outras poucas municipalidades dominadas pela classe média
e pelas classes afluentes da Venezuela são amplificadas por uma mídia nacional
e internacional comprometida com os interesses conservadores.
De um modo geral, as informações sobre as manifestações são
produzidas com o auxílio das agências de inteligência e propaganda
norte-americanas, que as repassam às agências internacionais de notícias, como
a Reuters. A partir daí, elas se disseminam para o mundo inteiro, gerando uma
percepção falaciosa do processo político venezuelano.
Entre 2013 e 2016, esse processo político radicalizado pela
oposição de direita acabou provocando a morte de pelos menos 46 pessoas, a
maioria chavistas ou de pessoas sem afiliação política, bem como danos
milionários a equipamentos públicos.
Tais “guarimbas” foram e são financiadas desde o exterior.
Com efeito, há uma conexão clara da direita venezuelana, particularmente dos
setores ligados a Leopoldo López, com a extrema direita da Colômbia,
principalmente com Álvaro Uribe e seus grupos de extermínio.
São essas conexões e os reiterados atos de violência que
levaram à prisão de López e Antonio Ledezma na Venezuela.
Caracterizá-los como presos políticos que tivessem cometido
“crimes de consciência”, como faz a imprensa brasileira, é desconhecer a realidade
de uma direita que não tem, de fato, qualquer compromisso com a democracia e os
direitos humanos e que aposta sistematicamente na violência como arma política
preferencial.
Concomitantemente, foi iniciado um processo econômico que
visa produzir carestia, desabastecimento e inflação, tal com o ocorreu, por
exemplo, no Chile de Allende ou mesmo na própria Venezuela dos anos 2002 e
2003.
De fato, a este respeito é necessário que a crise econômica
da Venezuela tem dois aspectos claros: um natural e outro artificial.
O natural, por assim dizer, tange ao fato óbvio de que a
economia venezuelana, apesar dos esforços de chavismo para diversificá-la,
ainda é muito dependente das exportações do petróleo e tem agricultura e
indústria débeis.
A arrecadação tributária da Venezuela é muito baixa, apenas
13,5% do PIB, bem abaixo da brasileira, por exemplo, que está em cerca de 35%
do PIB. Assim, o gasto público depende estreitamente da renda petroleira. Com a
grande queda dos preços dessa commodity a partir de 2012, a economia
da Venezuela passou enfrentar dificuldades reais graves, particularmente
problemas cambiais.
Entretanto, há também aspectos artificialmente induzidos na
crise econômica venezuelana. Há uma guerra econômica em curso.
Entre os instrumentos utilizados dessa guerra econômica
estão:
1) o desabastecimento programado de bens essenciais;
2) a inflação
induzida;
3) o boicote a bens de primeira necessidade;
4) o embargo comercial
disfarçado; e
5) o bloqueio financeiro internacional.
O desabastecimento é produzido pela especulação cambial e
pelo boicote político. O governo fornece aos importadores e comerciantes
dólares cotados, pelo câmbio oficial, a apenas 10 bolívares. Entretanto, no
câmbio negro, o dólar chega a ser cotado a milhares de bolívares. Na semana
passada, cegou a 16 mil bolívares por dólar. O que acontece é que muitos importadores simplesmente não
importam o que deveriam. Fazem os contratos, mas importam apenas uma fração e
depositam dólares no exterior.
Além disso, boa parte (cerca de 35%) dos
alimentos comprados são contrabandeados para o exterior, principalmente para a
Colômbia, onde são vendidos com muito lucro. Outra parte é vendida no mercado
interno, mas a preços excessivos, gerando carestia e inflação.
Ressalte-se que as importações de alimentos na Venezuela
totalizaram US$ 7,7 bilhões em 2014, sendo que em 2004 elas foram de apenas US$
2,1 bilhões. Ou seja, nesse período elas cresceram 259%. E, no caso de
medicamentos importados, em 2014 as importações foram de US$ 2, 4 bilhões,
enquanto que, em 2004, elas somaram apenas 608 milhões. Um aumento de 309%.
Portanto, a falta de alimentos, medicamentos, kits de
higiene, peças sobressalentes para transporte e outros produtos, bem como as
longas filas, não podem ser explicadas porque o setor privado não conseguiu
receber uma quantidade suficiente de dinheiro para as importações. Esse
dinheiro foi simplesmente desviado. Dessa forma, os depósitos em dólares de
empresas venezuelanas no exterior cresceram 233% em apenas cinco anos.
Outro fator da guerra econômica tange à inflação induzida
pela especulação. Em 2016, a economista venezuelana Pasqualina Curcio estimou,
com base nas reservas e na liquidez monetária, que taxa real de câmbio deveria
ser de 84 bolívares por dólar. No entanto, no câmbio negro o dólar já chegava a
1.212 bolívares por dólar. Essa discrepância dilatada e sem base
real alimenta um índice inflacionário inteiramente especulativo.
Além de tudo isso, Venezuela sofre, desde 2013, com uma
espécie de bloqueio financeiro não oficial. Ele consiste em tornar cada vez
mais difícil e caro para a República e, especialmente, PDVSA, o acesso ao
crédito no mercado internacional e em obstaculizar as transações financeiras.
Nesta área, as armas são invisíveis: tratam-se
principalmente da publicação de níveis elevados de índice de risco país e do
retardamento das transações financeiras costumeiras. Observe-se que, mesmo com
a crise, a Venezuela vem cumprindo estritamente as suas obrigações financeiras,
de modo que tais obstáculos não têm base racional e real.
No entanto, o fato concreto é que essa guerra econômica vem
ajudando a radicalizar ainda mais o processo político venezuelano.
Nos últimos 4 meses, morreram mais de 100 pessoas nos
conflitos de ruas. Houve linchamentos de chavistas, inclusive de um que foi
queimado vivo, atentados terroristas, incêndios de prédios públicos, inclusive
de uma maternidade. Houve também, é claro, a morte de manifestantes da oposição
pelas forças de segurança. A violência se generalizou.
Ao mesmo tempo, o impasse institucional entre o Poder
Executivo e a Asamblea Nacional, dominada pela oposição congregada na MUD,
agravou-se, sem quaisquer iniciativas de ambos os lados para um diálogo sério e
construtivo.
Assim sendo, a Venezuela de hoje está à beira de uma guerra
civil de proporções calamitosas e consequências imprevisíveis.
Ante tal impasse, o governo chavista optou pela convocação
de uma Assembleia Nacional Constituinte, prontamente rejeitada pela oposição.
A oposição logo alegou que a convocação era inconstitucional
e que visava perpetuar o poder de Maduro.
- Bom, em primeiro lugar, tal convocação não é
inconstitucional. A convocação da Assembleia Constituinte pelo presidente da
república está prevista clara e explicitamente no artigo 348 da Constituição da
Venezuela.
- Em segundo lugar, a Assembleia Constituinte não substitui
a Asamblea Nacional (o parlamento unicameral da Venezuela), como foi
afirmado falsamente, a qual continuará a funcionar e a cumprir suas funções
legislativas.
- Em terceiro lugar, a convocação de assembleias constituintes
é um mecanismo frequentemente usado em países democráticos como solução
pacífica para impasses políticos e institucionais como o que acomete a
Venezuela atual.
- Em quarto lugar, a convocação teve apoio expressivo da
população. O número de votantes para a assembleia (mais de 8 milhões) foi
superior aos votos que teriam sido obtidos pelo plebiscito informal que a
oposição convocou uma semana antes contra a assembleia ( cerca de 7,2 milhões
de votos).Observe-se que esse plebiscito é que foi, sim, inteiramente
ilegal. Não fosse o clima de violência criado pela oposição, as barricadas que
impediram o acesso aos centros de votação e o boicote ostensivo das empresas de
transporte, que fizeram locaute no dia da votação, a participação eleitoral
poderia ter sido bem superior.
- Em quinto lugar, os objetivos estratégicos da Assembleia
Constituinte são bem mais amplos do que o suposto desejo de perpetuar Maduro no
poder.
A Assembleia visa essencialmente constitucionalizar as misiones sociais,
bem como estabelecer as bases jurídicas e institucionais de uma economia
pós-petroleira. A preocupação fundamental é impedir retrocessos sociais,
como os que ocorrem atualmente no Brasil, e criar mecanismos econômicos que
levem a Venezuela a ampliar a base produtiva de sua economia, de modo a superar
definitivamente a sua dependência dos hidrocarbonetos.
Há de se enfatizar, além disso, que o texto que sairá dessa
Assembleia só terá valor jurídico se for aprovado pela população em referendo.
Tal constatação minimiza a crítica da oposição de que o
sistema de votação estabelecido para a Assembleia Constituinte criava um “jogo
de cartas marcadas”.
Na realidade, dos 545 membros da Assembleia, dois terços
(364) foram eleitos em base territorial, e um terço (181) com base em
setores organizados da sociedade civil, como estudantes, agricultores,
sindicatos de trabalhadores, organizações empresariais, representantes das
comunidades indígenas, etc.
Embora se possa argumentar que tal sistema gera uma
distorção na proporcionalidade do voto, é necessário se entender que tal
distorção é menor do que a distorção na proporcionalidade que se verifica em
muitos países democráticos que adotam o voto distrital.
No Reino Unido, por exemplo, o Partido Liberal tem sido
frequentemente prejudicado, pois o percentual de cadeiras que recebe é sempre
inferior ao seu percentual de votos. O partido foi sub-representado em todas as
eleições para a Câmara dos Comuns no pós-1945: com uma média de 12,4% dos
votos, obteve uma média de 1,9% das cadeiras. A diferença mais acentuada
ocorreu em 1983, quando recebeu 25,4% dos votos e elegeu apenas 3,5% dos
representantes.
Entretanto, as distorções também se dão entre os partidos
principais. Por exemplo, nessas ultimas eleições britânicas, os conservadores
tiveram apenas 2,4% a mais de votos entre os eleitores que o Partido
Trabalhista (42,4% x 40,0%). Contudo, conseguiram eleger 55 representantes a
mais que os trabalhistas (317×262). Pela proporcionalidade do voto, tal
diferença deveria ter resultado em apenas 15 cadeiras a mais.
Na França moderna, nas duas eleições em que um partido
obteve mais de 50% de cadeiras, ele o fez por intermédio de maiorias
manufaturadas por distorções: em 1968, os gaullistas (atual RPR) receberam 38%
dos votos e 60% das cadeiras; em 1981, o Partido Socialista, com 37% dos votos,
ficou com 57% das cadeiras.
Assim sendo, caracterizar a convocação da Assembleia Constituinte
como um “golpe” ou uma “ruptura da ordem democrática” é algo de evidente má-fé.
Pode-se não concordar com tal convocação, mas não se pode denominá-la de
“golpe”. Golpe foi que aconteceu no Brasil.
A alternativa à Assembleia Constituinte parece ser uma
guerra civil aberta. Ao menos, a Assembleia Constituinte cria uma oportunidade
para que se estabeleça um diálogo que supere o atual impasse político e
institucional daquele país.
Lamentável, em todo esse processo, é a posição do governo
golpista e sem voto do Brasil. Desde que assumiu ilegitimamente o poder, esse
governo fez da suspensão da Venezuela do Mercosul e da derrubada do governo
chavista a sua diretriz principal em política externa, atuando como braço
auxiliar dos EUA no subcontinente.
Ao fazê-lo, o governo golpista apequenou o Brasil e retirou
qualquer possibilidade do nosso país atuar como mediador de conflitos na
região, como vinha fazendo nos governos do PT.
O empenho do Brasil contra a Venezuela foi de tal ordem que
a suspendeu duas vezes do Mercosul. Com efeito, antes da última decisão de
utilizar a cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia, a Venezuela já estava
suspensa, na prática, do Mercosul desde dezembro do ano passado, sob a escusa,
sem embasamento jurídico, de que o país não havia internalizado todas as normas
do bloco, situação que se verifica em todos os Estados Partes.
Assim, a decisão de utilizar a cláusula democrática
representa mera peça propagandística contra o governo legitimamente eleito da
Venezuela.
Além de empenhado nos retrocessos socais e políticos
internos, o governo do Brasil está empenhado também em forçar retrocessos na
região.
Nosso principal produto de exportação é hoje o golpe.
*Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações
Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais
(GR-RI). (Especial para o Viomundo)
