Ler Para Saber... | Nem Golpe, Nem Poderes Supremos: Entre Musk e Moraes, Ela, a Democracia
Por Ana Mielke, Maryellen Crisóstomo e Patrícia Paixão(¹)
Alexandre de Moraes protagoniza combate à desinformação no Brasil,
mas sua atuação não está blindada de questionamentos...
Os recentes embates entre Elon Musk, o bilionário dono da
plataforma X, e as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) lançaram luz a
uma série de questões. Como já trouxemos nos três textos que nos antecederam
nesta série de artigos, é preciso
estabelecer limites a Elon Musk para defender a democracia. Seus
interesses econômicos e políticos não podem estar acima de tudo, desrespeitando
as instituições democráticas, as legislações nacionais, os territórios e os
direitos humanos. Além disso, está evidente que as ações de Musk, em especial,
na Amazônia, hoje o colocam na posição de adversário das
populações locais, dos territórios, da defesa da justiça socioambiental e da
soberania tecnológica do Brasil.
Dentre as questões levantadas está a de que o país necessita de um
conjunto de regras que deem conta de
regular o papel das plataformas digitais, impedindo possíveis abusos.
Além de fortalecer a democracia, a aprovação de leis regulatórias permitiria
aplacar desconfianças sobre possíveis decisões discricionárias e retirar o foco do debate do ministro Alexandre de Moraes, do STF.
Alexandre de Moraes vem protagonizando o enfrentamento à
desinformação no Brasil, em especial, àquela desinformação que visa
desestabilizar as instituições democráticas. Em 2019, tornou-se relator no
Inquérito nº 4781 aberto pela presidência do STF, à época sob comando do
ministro Dias Toffoli. A investigação, que ficou conhecida como "Inquérito das Fake News", tinha por finalidade
investigar os ataques contra membros do órgão e contra a instituição, mas foi
sendo ampliada para investigar também as inúmeras notícias falsas que
circularam sobre o processo eleitoral que ocorreu meses antes, em 2018. Outros
inquéritos foram abertos com objetos semelhantes, como o Inquérito nº 4784,
aberto em 2021, conhecido como "Inquérito das Milícias Digitais".
Em 2022, ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
Alexandre de Moraes deu continuidade ao seu esforço em combater a
desinformação. Em seu discurso de posse na corte, Moraes declarou que a Justiça
Eleitoral seria "célere, firme e implacável no sentido de coibir práticas
abusivas ou divulgações de notícias falsas ou fraudulentas. Principalmente aquelas
escondidas no covarde anonimato das redes sociais, as famosas fake news".
E não restam dúvidas de que a atuação do ministro ajudou a garantir
o pleito. A proibição de que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) fizesse qualquer
tipo de operação no dia das eleições que dificultasse a participação dos
eleitores foi fundamental. É dele também o protagonismo em garantir a
responsabilização dos envolvidos na Intentona Golpista de 8 de janeiro de 2023,
logo após a posse do Presidente Lula.
Sua atuação, por outro lado, não está blindada a questionamentos em
âmbito político e jurídico. O Inquérito nº 4781, por exemplo, é regado de
controvérsias jurídicas, sendo alvo, inclusive, de Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) produzida pela Rede Sustentabilidade. A ADPF
questiona a legalidade do STF em determinar, de ofício, a abertura de inquérito,
levando em conta que inquéritos deveriam ser abertos pelo Ministério Público
Federal (MPF) e serem executados pela Polícia Judiciária, conforme prevê o
Código Penal.
Por outro lado, a justificativa para a instauração do inquérito
levou em conta o regimento interno do STF, que prevê essa possibilidade quando
a "infração à lei penal [ocorrer] na sede ou dependência do Tribunal [...]
ou envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição". E, nesse caso,
tanto Moraes quanto a instituição que representa sofreram graves ataques.
A decisão do STF pelo bloqueio das contas de dezenas de usuários
das redes sociais, a partir do inquérito em questão, algo que ocorreu em 2020,
também é motivo de debates. O bloqueio foi estabelecido para contas de usuários
que flagrante e reiteradamente propagavam desinformação contra as eleições,
contra as instituições democráticas e contra o próprio STF. As decisões, assim
como o inquérito citado, tiveram anuência do colegiado do STF.
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014),
lei aprovada em 2014, que versa sobre os direitos dos usuários na internet,
estabelece que conteúdos podem ser indisponibilizados por ordem judicial, mas
não regulamenta a exclusão ou bloqueio de contas de usuários. E embora o
bloqueio tenha sido feito para proteger a democracia, sob a prerrogativa do
poder geral de cautela do juiz (Art. 301 do Código Civil), é recomendado que a
sanção guarde paralelismo com as penas previstas na legislação civil e penal em
vigor.
Isso quer dizer que o bloqueio de contas não pode ser por tempo
indeterminado (nenhuma sanção penal no Brasil é por tempo indeterminado) e não
poderia se amparar na premissa de que o usuário em questão pode difundir
ilegalidades ou ofensas e sim, apenas, naquele conteúdo que o usuário já
difundiu. Essa exclusão tem amparo, inclusive, em extenso arcabouço jurídico no
Brasil, que inclui as leis contra racismo, lgbt+fobia, apologia ao nazismo e ao
genocídio, além da própria Constituição. Além disso, ganha amparo nos padrões
internacionais que versam sobre a liberdade de expressão e a reconhecem como
direito fundamental, porém não absoluto, devendo, portanto, resguardar a
integridade individual e coletiva.
Em relação à suspensão e ao bloqueio do X no Brasil já está mais
do que justificada a decisão do STF. Especialmente porque ela visa proteger os
direitos dos cidadãos ao responsabilizar a plataforma digital. Os desmandos de
Musk e as violações promovidas pelo X não são compatíveis com a democracia e
atentam contra a soberania nacional brasileira. Ainda assim, a aplicação de
multa de R$ 50 mil reais para os usuários que usassem VPN (da sigla em inglês,
Rede Virtual Privada) para burlar o bloqueio do X e assim acessarem suas contas
foi um tanto desmedida e considerada desproporcional, abrindo um precedente
perigoso.
Precisamos de Heróis?
A crescente polarização política, o crescimento do fundamentalismo
religioso e da extrema direita no Brasil nos levaram a uma posição extremamente
desconfortável e bastante prejudicial à democracia. Fazemos dos debates
públicos uma espécie de jogo de futebol, onde existem apenas vencedores e
perdedores ou como uma graphic novel mal
escrita, em que apenas existem heróis e vilões, sem camadas, sem profundidade.
A análise apressada das redes sociais, inclusive, é origem e resultado desse
processo.
Enquanto Elon Musk é colocado no pedestal da extrema direita como o
paladino da liberdade de expressão e a figura do bilionário vai sendo esculpida
como a de um mártir, expoente das liberdades individuais e de mercado,
Alexandre de Moraes vai sendo alçado à categoria de herói nacional por defender
a democracia e as instituições – o que deveria ser pressuposto – em tempos de
ataques ferozes da extrema direita. Nesse sentido, a emergência de supostos
heróis nacionais, no entanto, deve ser vista com cautela.
Indicado ao STF em 2017, quando um acidente fatal tirou a vida do
ministro Teori Zavascki, Alexandre de Moraes foi alçado à posição de ministro
durante o governo golpista de Michel Temer (MDB), com indicação do então
presidente, a pedido da cúpula do PSDB de São Paulo. E como vimos
anteriormente, de 2017 para cá vem se tornando um grande expoente da República,
alternando decisões ora consideradas sensatas, ora consideradas polêmicas.
Vale lembrar ainda que, antes de assumir o posto, ele foi
secretário estadual de Justiça do Estado de São Paulo (2002-2005) e secretário
estadual de Segurança Pública do Estado de São Paulo (2015-2016), período de
explosão no número de pessoas mortas por policiais militares e civis em serviço
(foram 607 em 2015 e 590 em 2016, dados da SSP-SP). Também atuou como advogado,
defendendo o então presidente da Câmara e deputado cassado Eduardo Cunha
(PMDB), atualmente preso pela Operação Lava Jato.
A atuação de Moraes tem sido muitas vezes qualificada como estando
entre a defesa do Estado Democrático de Direito e o acúmulo de poderes, sendo o
ministro algumas vezes acusado de cometer abusos constitucionais. Há ainda quem
critique a sobreposição do STF em assuntos que deveriam ser legislativos, o
que, de certa forma, estaria impactando diretamente a autonomia dos Três
Poderes.
O fato é que o STF tem muitas vezes atuado nas lacunas deixadas por
um Congresso Nacional cujos parlamentares estão interessados apenas em garantir
as emendas impositivas que beneficiam suas bases eleitorais. O fato de o PL
2630/2020, que regula as plataformas digitais, promovendo liberdade,
transparência e responsabilização na internet, ter sido engavetado pelo
presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), mesmo após quatro anos de debates com
a sociedade civil, é a prova de que não há urgência em combater a desinformação.
Já vivemos experiências recentes sobre como o uso desproporcional
do Sistema de Justiça pode muitas vezes provocar desequilíbrios. Há atualmente
toda uma literatura problematizando como o lawfare pode deslocar a
arena da disputa política. Depois de termos vivido a experiência da Operação Lava Jato e a ascensão política do juiz
Sérgio Moro, atualmente senador da República, seria inteligente e precavido
olhar com maior atenção às nossas fragilidades institucionais e a forma como
tais fragilidades possibilitam a emergência de supostos "salvadores da
pátria".
(...)